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'É esta a representação que precisávamos?' | Assassinos da Lua das Flores e o retrato dos indígenas

Atualizado: 8 de jun. de 2024


Assassinos da Lua das Flores

Há uns dias fui assistir ao mais recente filme do Scorsese, “Assassinos da Lua das Flores”. Enquanto um cineasta que vem buscando retratar vivências de indígenas do nordeste — com meu filme “Ytwã” e outros trabalhos em fase de desenvolvimento — fiquei muito animado com o trailer do filme e acompanhando sua grandiosa e bem aclamada estreia no Festival de Cannes. “Esta é uma nova era para o cinema”, pensei, “décadas de opressão estão encontrando sua contrapartida histórica nas telas.”


A experiência que tive, no entanto, foram de três horas desconfortáveis e dolorosas no cinema. E o fato do filme ter sido tão aclamado era parte da dor. Seria um incômodo só meu?


O filme é magistral. Incrível. Me manteve com os olhos presos na tela durante toda sua duração. Não é lento nem deveria ter menos tempo. Mas retratar de forma tão gráfica o assassinato de tantos indígenas… para que? Lembrei de histórias de assassinatos que escutei em Kiriri, parentes de gente em que estive nas casas. A história desse filme não é tão distante.


Voltei pra casa e liguei para Tyson Tsosie, um amigo estadunidense do povo Diné/Navajo, do Novo México. Ele me contou que viu o filme, mas se sentiu muito vulnerável assistindo. Se viu de dentro para fora e de fora para dentro, foi lembrado de como ele é percebido enquanto indígena. Sentiu solidão, indiferença e raiva. “É um ótimo filme, mas não era para um público indígena”, ele comentou.


Nos seus primeiros trinta minutos, o filme conta como, com a extração do petróleo em sua reserva, os Osage se tornaram uma das comunidades mais ricas do planeta. Os indígenas aparecem em trajes pomposos que mesclam estilos europeus e nativos, ostentam jóias e carros luxuosos conduzidos por motoristas brancos. Estavam se apropriando do sonho americano enquanto mantinham sua língua e tradições. Era diferente de tudo o que eu já tinha visto e sido ensinado!


Foto: Reprodução/ William J Boag | Oklahoma Historical Society via Getty Images

Brinquei com Tyson que eu assistiria a um filme de duas horas só sobre esse momento. Seria como no início do filme Barbie: a inversão absoluta de uma dinâmica de poder, um exercício imaginativo que nos leva a questionar: “por que as coisas não são (ou podem ser) diferentes?”. “E se?”.


Me sinto inclinado a dizer que o filme podia parar por aí. O que veio em seguida foi descrito pela atriz Devery Jacobs, indígena Mohawk (Canadá) e protagonista da série “Reservation Dogs”, como “doloroso, cansativo, duro e desnecessariamente gráfico.”

Ela escreveu uma thread muito pertinente no X (ex-Twitter) sobre o filme. Seguem alguns trechos traduzidos:


Sendo indígena, assistir a esse filme foi um inferno. Imagina as piores atrocidades cometidas contra seus ancestrais, depois ter que assistir a um filme explicitamente preenchido com isso, com os únicos respiros sendo cenas de 30 minutos de caras brancos falando sobre/planejando os assassinatos. (...)

Entendo que o objetivo desta violência é agregar valor ao choque brutal que força as pessoas a entenderem o horror real pelo qual essa comunidade passou, MAS — não creio que essas mesmas pessoas muito reais tenham recebido honra ou dignidade no retrato horrível de suas mortes. Pelo contrário, acredito que ao mostrar mais mulheres indígenas assassinadas na tela, isso normaliza a violência cometida contra nós e desumaniza ainda mais os nossos povos.

Não acredito que isso precise ser dito, mas pessoas indígenas existem além de nossa dor, trauma e atrocidades. Nosso orgulho de sermos indígenas, nossas línguas, culturas, alegria e amor são muito mais interessantes e humanizadores do que mostrar os horrores que os homens brancos nos infligiram. Esse é o problema quando os diretores não-indígenas têm a liberdade de contar as nossas histórias; eles centralizam a perspectiva branca e focam na dor dos povos nativos.

No fim das contas, depois de 100 anos da maneira que as comunidades indígenas têm sido retratadas em filmes, será esta realmente é a representação que precisávamos?

Além da representação e total falta de protagonismo indígena, a forma como os protagonistas brancos são retratados merece considerações adicionais. A distinção entre herói e vilão orienta nossa relação moral com os personagens e a capacidade de distinguir amizade e vilania é uma temática constante do filme.


Em entrevista à HPPR, Cara Jade Myers, atriz que interpretou Anna, comenta uma cena na qual a personagem e suas irmãs estão em um piquenique falando de como, mesmo querendo roubar seu dinheiro, elas acham esses homens brancos bonitos. Ela descreve a cenas como uma das mais trágicas do filme:


Essas mulheres estavam genuinamente confiando e amando, e elas esperavam que seus maridos tomassem conta e protegessem elas… Mesmo sendo uma cena feliz, se você sabe o final, se torna trágica

Foto: Reprodução/ FBI

A ideia do trágico oculto no filme é o que me intriga. Talvez o aspecto mais perturbador do grande vilão do filme, William Hale (Robert DeNiro), é seu constante sorriso. Todos eram reféns de seus planos, poucos se davam conta da manipulação à qual estavam sendo sujeitos. O próprio personagem de DiCaprio não se dá conta quando subitamente é trocado, nos planos do tio Hale, de parceiro para alvo.


E nós, o público, quanto temos a capacidade de identificar vilania não só nos protagonistas (todos) mas nas pessoas fora das telas quem eles representam?


Foto: Reprodução/ Bettmann Archive | Getty Images

Como apontou Devery Jacobs, os únicos respiros das mortes em tela eram “cenas de 30 minutos de caras brancos falando sobre/planejando os assassinatos.” Era comum em cenas nas quais William Hale (Robert DeNiro) e Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) planejam o assassinatos escutarmos músicas na trilha sonora, Reign of Terror, um tipo de blues “upbeat”, otimista e, eu diria, conivente com a intenção dos personagens. Uma música que nos coloca num estado similar a Kill Bill Vol. 2, quando a protagonista está em sua marcha para alcançar seus objetivos. Se fosse para ter música nessas cenas, eu não esperaria essa.


Músicas sempre manipulam os sentimentos, então, admitindo-se que a intenção é ter música e manipular sentimentos, porque não colocar uma música sinistra que evidencia como devemos nos sentir ao escutar dois homens brancos planejando maldades?


Não proponho uma leitura simplista sobre a cena, nem o filme. Conversas precisam acontecer sobre a representação indígena e branca no cinema para podermos desenvolver compreensões mais apuradas e releituras históricas que guiem a forma como vamos tratar hoje as políticas e decisões que guiam a vida da nossa sociedade.


Por fim, para quem quiser assistir a outros filmes que retratam os povos originários, temos obras como “A Última Floresta” (Netflix), “Bicicletas de Nhanderu” (Vimeo) e Tyson recomendou “Reservation Dogs” (Star+) também.


Para saber mais sobre as conquistas, as lutas e os desafios dos povos indígenas da Bahia, sugiro acompanhar o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia - MUPOIBA: https://www.instagram.com/mupoiba/


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