Um olhar (des)moralizante sobre Meteorango Kid (1969)
- Yan Inácio (Convidado)
- 22 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2024
Reflexões sobre minha primeira experiência com o cinema marginal brasileiro

18 de agosto de 2024, pouco mais de 21h, fim da sessão da cópia restaurada do filme Meteorango Kid, de 1969, no Cine Glauber Rocha. O diretor André Luiz Oliveira, um homem idoso de 76 anos, está encolhido por conta do frio do ar condicionado da sala, tem profundas olheiras e olha diretamente na minha direção enquanto fala que tentou, por 20 anos, na psicanálise, entender sua criação. Por isso, no meu pensamento paira um sentimento de impotência: "quem sou eu para ao menos tentar deixar de lado o que acabei de ver?", penso. É como se ao fim do filme, eu tivesse batido com a cara no concreto, melhor dizendo, é como se alguém tivesse me empurrado com força nessa superfície dura.
Dentro desse profundo choque, ao mesmo tempo tento digerir a intensidade das coisas expostas ali no filme. O desejo de rebelião do diretor, refletido na desorientação total de Lula, um jovem anárquico, soa selvagem atualmente, assim como deve ter soado naquele longínquo 1969, o momento mais sombrio da ditadura, no ápice do AI-5. Assistindo agora, em 2024, sob o privilégio de um Brasil que se diz democrático, mas que subjuga populações marginalizadas, me vem à mente um sentido de civilidade, penso que talvez não faça sentido ser tão “porra louca” como Lula.

Na sequência inicial, após a chegada desse herói intergaláctico que, ironicamente, descobrimos não ser herói coisa nenhuma, um convite para olhar seu corpo frágil. Entre a exploração da angústia da crucificação e os créditos do filme, um direcionamento surge na tela: "esse filme é dedicado aos meus cabelos", então olhe para o cabelo, observe esse corpo chegar do céu, através de um ovni. Pense assim: pode ser uma pequena vaidade para um grande personagem humilde e siga refletindo sobre enquanto o filme apresenta Lula.
Na cena seguinte, Lula agora é venerado como o grande ator que pensa ser. É com essa câmera como pensamento, que somos apresentados a uma massagem ao seu ego. Depois, descobre-se que aquilo tudo é um sonho messiânico e picareta de nosso protagonista, um jovem pertencente a uma classe média conivente ao regime militar. Lula não é conivente, ele apenas não se importa. Seu único pensamento é egoístico, sua vocação é para a autodestruição. A glorificação e a empatia construídas através do sofrimento que a figura de Jesus suscita inicialmente é sucedida por um profundo asco àquele que sonha em ser rebelde, descabido e conflituoso, mas que recai no grotesco e não produz nada com essa energia, apenas uma grande dor de cabeça.
"Que cara é esse?", me diz meu amigo, depois de observar as atrocidades que Lula comete, como assediar uma mulher no ônibus e jogar cacas de nariz em outras meninas. Acho que meu amigo está falando muito, mas eu o perdôo, porque de certa maneira, está usando as palavras para expurgar a ação suja e misantrópica do personagem de sua mente. As reverberações daqueles anos com certeza não me chegam na mesma intensidade, mas consigo percebê-las como ecos na mente de Lula através do som: o discurso do “é proibido proibir” de Caetano, os gritos de seu Tarzan tresloucado imaginário e o descompromisso daquela "nova raça" murmurada por Moraes Moreira.

Através da sátira, o filme nos convoca a pensar através da visão de Lula. A câmera filma uma Salvador antiga em tremeliques, reconstruindo seus olhares e pensamentos insanos, como nas cenas em que ele, que aspira ser ator, se imagina como o Tarzan do cartaz que observa. As lentes traduzem esse fluxo de consciência desprovido de sentido aparente para a mente de quem assiste e em alguns momentos, quebra a quarta parede com um toque metalinguístico, jogando para o espectador a obrigação de lembrar que ele está ali e não deve sair impassível ao que vê.
Tudo isso me faz refletir em como aquela época convocava à essa violência. Hoje, no comentário após o lançamento da versão restaurada, André Luiz Oliveira se pergunta por que o filme causou e ainda causa tanto choque, 55 anos depois? Eu somo à sua pergunta outra: porque esse filme gruda na mente como sanguessuga? Eu ouso imaginar que seria por essa câmera que constrói o inconsciente de Lula, nos coloca dentro da cabeça dele e nos faz pensar eticamente em suas atitudes, ao mesmo tempo em que nos convoca a recuperar dentro de nós uma motivação que está enterrada lá no fundo. Uma vontade inconsciente de ser, assim como ele, um marginal, um rebelde, um anti-herói, mas que é podada pela moral da consciência coletiva.
Imagino Lula como um reflexo perfeito dessa iconoclastia. É o que ele mais quer, ser herói e é onde ele se insere, na margem, que reflete seu ego. Sua rebeldia regressa ao primitivismo, porque une a anarquia ao privilégio do acaso, como na cena em que fuma maconha com seus amigos e um deles entra na onda “errada” de pensar o presente: “Essa merda vai explodir um dia desses e todo mundo vai ficar que nem papel picado”. Lula rechaça esse pensamento e segue firme em seu profundo desinteresse. Para ele, não importa atirar ou não em seu amigo, e depois de matá-lo, o mesmo se aplica à roleta russa que faz consigo mesmo. Ali, não importa morrer ou sair vivo.

"Saindo dos prédios para as praças, uma nova raça”: Moraes Moreira anuncia, junto com o fluxo de consciência de Lula, esse novo tipo de sujeito na sociedade soteropolitana. Um descompromissado do coletivo, que rejeita a boa vontade e que se encolhe cada vez mais nesses prédios. Quem sabe siga os caminhos desviados da marginalidade para sempre, mas ainda tem o (b)ônus do privilégio de poder fugir da margem quando bem quiser. Esse pastiche do diretor pode soar infundado agora, mas é catapultado pelo sentimento de rebeldia dos anos 70, o momento mais duro do regime militar e a época das transformações na juventude. É na posterioridade desse mundo que me encontro agora, com uma visão tão atomizada e impulsionada pela individualidade imposta pelo capitalismo tardio, que tento entender a transgressão de Lula e a sátira de André Luiz Oliveira, mas me é um pouco árdua essa tarefa.
Em detrimento à nova raça que surge dessas construções verticais, está o estrangeiro do filme. Na comunidade de pescadores, onde a repórter amiga de Lula quer fazer uma reportagem sobre OVNIs, e para onde Lula vai, com sua cara de pau, o primeiro contato entre ele e aqueles que não têm a palavra, é um insulto racista vindo dele. Depois, descobre-se que eles não falam português (mas deveriam, porque são brasileiros) e que estão sob a custódia de um antropólogo duvidoso, um verdadeiro fetichista. É como se fossem, então, “selvagens” sujeitos ao controle do homem branco. Para Meteorango Kid, que está desconectado desse mundo, assim como de todas as outras coisas, pouco importa. O que ele faz é capturar com sua câmera aqueles corpos que não têm voz e aprisioná-los nas imagens da câmera.

Por isso, penso que os verdadeiros marginalizados são aqueles agredidos por Lula. Desde as mulheres vítimas da violência, passando pelos pescadores insultados, até o gay escrachado antes e depois da morte. Todos esses indivíduos, que naquela época estavam sujeitos às margens da vida e dos filmes, que não tinham o direito de falar por si só através da voz e da imagens, são atravessados por Lula em sua odisséia delinquente, esse homem que vive a errar pelo mundo correndo atrás do maligno, do insensato, de tudo que há de ruim e que se apoia no privilégio da impunidade. Ao fim do filme, nos é oferecido seu atestado de criminoso: enquadrado na tela, Lula é acompanhado pelos dizeres “procura-se vivo ou morto” depois, vem uma gozação. “Curti adoidado” é a constatação de seu ego acima de tudo e de todos.
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