Trágica Obsessão: a relação umbilical entre De Palma e Hitchcock
- Vitor Rocha
- 21 de jul. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 12 de jan.

Brian De Palma e Alfred Hitchcock são diretores com uma relação muito direta. É evidente que qualquer cineasta tem suas referências e as insere em seu trabalho, mas De Palma leva isso adiante, derivando grande parte do seu trabalho dos filmes do diretor britânico. No entanto, o cineasta da Nova Hollywood, movimento cinematográfico dos anos 70 liderado por jovens que desafiavam as convenções da indústria estadunidense, transforma as características hitchcockianas em algo seu, reinterpretando o que já foi feito. É quase como uma relação de professor e aluno, onde um reverencia o outro o tempo todo, mas o faz ao seu modo.
Maneirismo e Formalismo

Reprodução: Criterion
Antes de qualquer coisa, é necessário compreender as diferenças entre as características maneiristas e formalistas de De Palma e Hitchcock, respectivamente. O formalismo do diretor britânico é um estilo que se concentra no controle rigoroso dos elementos cinematográficos para criar uma narrativa coerente e impactante. Este estilo valoriza a forma e a técnica de maneira disciplinada e meticulosa, criando uma encenação completamente planejada. Já o maneirismo do diretor americano se destaca pela ênfase na forma e na técnica, frequentemente de maneira autoconsciente e deliberadamente exagerada. O cinema de De Palma referencia Hitchcock o tempo inteiro, mas de maneira autoconsciente e distorcida, tornando a referência um elemento do seu estilo como autor. Nesse sentido, a intertextualidade está muito presente entre os dois diretores, uma questão que é exposta completamente no filme Trágica Obsessão (1976), onde o maneirista coloca a trama de Um Corpo que Cai (1958) quase como ponto de partida para as discussões em seu filme.
Trágica Obsessão (1976) e Um Corpo que Cai (1958) - COM SPOILER

Antes de tudo, é fundamental entender que toda obra de arte é um reflexo do seu tempo. Nesse contexto, Alfred Hitchcock está inserido em uma era em que o cinema americano ainda era influenciado pelo Código Hays, um conjunto de diretrizes que censurava filmes com determinados temas, como o sexo. Já Brian De Palma faz parte do período da Nova Hollywood, uma fase em que os cineastas americanos desfrutaram de maior liberdade criativa dentro da indústria. Essas diferenças históricas também ajudam a explicar as distintas abordagens de ambos sobre a obsessão de seus protagonistas.
Em Um Corpo que Cai (1958), Hitchcock explora a obsessão de John 'Scottie' Ferguson por uma mulher que se assemelha à sua falecida amada. Essa temática também é o cerne de Trágica Obsessão (1976), mas De Palma a conduz a um patamar ainda mais distorcido. O protagonista Michael Courtland, após a morte da esposa e da filha, encontra uma mulher idêntica à sua falecida companheira, desencadeando uma obsessão semelhante à de Scottie. Contudo, o desfecho surpreendente, que revela que a mulher é, na verdade, sua filha, adiciona camadas de desejo, culpa e tabu, ultrapassando os limites do que Hitchcock poderia explorar em sua época. De Palma não apenas homenageia seu mestre, mas também intensifica e subverte essas ideias, criando uma narrativa ainda mais provocativa e inquietante.

As influências de Hitchcock na obra de De Palma vão além de Trágica Obsessão. Cenas inspiradas diretamente em Um Corpo que Cai, Janela Indiscreta e Psicose aparecem em vários filmes do maneirista, como Dublê de Corpo, Vestida para Matar, Olhos da Serpente e Irmãs Diabólicas. A exploração do voyeurismo, central no cinema de Hitchcock, também é uma constante no trabalho de De Palma, que manipula o ponto de vista e a percepção do público para criar experiências visuais distintas. Embora suas raízes sejam hitchcockianas, De Palma desenvolve uma linguagem visual própria, marcada por recursos como câmeras subjetivas e o uso do split diopter.
Assim, não faz sentido a crítica de que o maneirista copie as obras do formalista, uma vez que as diferenças minuciosas na maneira como ambos veem o cinema criam uma estética completamente diferente. Nesse sentido, a relação entre De Palma e Hitchcock não é apenas de reverência, mas de um diálogo cinematográfico onde o aluno se torna um autor que desafia e redefine as tradições estabelecidas por seu mentor. Ao transformar as influências de Hitchcock em narrativas exageradas e estilizadas, De Palma não apenas segue os passos de seu mestre, mas também os amplifica, criando um legado único que continua a intrigar o público.
De Palma na contemporaneidade
Apesar de ser uma figura-chave na Nova Hollywood, a estética exuberante de De Palma e sua ênfase no maneirismo contrastam com o cinema contemporâneo, que valoriza o realismo e uma narrativa mais contida. Hoje, muitos cineastas buscam uma abordagem menos artificial e exagerada, utilizando uma narrativa crua e realista.
De Palma, por sua vez, mantém uma abordagem visualmente intensa e cheia de artifícios, usando câmeras subjetivas e focos dramáticos que distanciam seu estilo do realismo psicológico predominante no cinema moderno. Embora sua técnica possa parecer deslocada no contexto atual, ela continua a desafiar as convenções, mostrando que o cinema não precisa ser apenas um reflexo frio do mundo real.
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