pov: você não é a rapunzel indiana
- Samantha Freire (Convidada)
- 11 de jun. de 2024
- 5 min de leitura

Se sua presença online alcança pelo menos o segundo círculo do inferno de Elon Musk, é certeza que você viu prints/vídeos do Tik Tok de garotas brancas de vinte e poucos anos perdendo os lados porque circulava por aí o fancasting (atores/atrizes que fãs/pessoas em geral visualizam ideais para interpretar determinados personagens em adaptações live action) da atriz Avantika Vandanapu, americana com ascendência indiana, como Rapunzel na live action de Enrolados.
Até aí tudo normal, não é novidade pra nós dois que, para muitas pessoas, é mais inconcebível existir uma mulher racializada do que cabelos mágicos, semideuses e sereias. Eu não preciso te dizer que a cultura do cancelamento e o identitarismo estão invadindo casas e quebrando televisões a torto e a direito. Não preciso te dizer que é tão ofensivo para essas pessoas que elas agem como se fosse O problemão sempre que acontece, a ponto de sentirem a necessidade de ir no Instagram das atrizes para depositar todos os comentários mais misóginos e racistas possíveis por coisas que, às vezes, como no caso de Avantika, nem são reais. O problema aqui não é esse.

O problema não é nem que parece que essas pessoas levam um susto quando vêem uma cor ou um olho e nariz de um formato diferente, como quem vê um vulto ou como quem entra em casa e vê as coisas em posições diferentes do que deixou quando saiu. Não, isso não surpreende, o problema é que parece que, para essas pessoas, esse “novo formato” é completamente disfuncional, porque é impossível se mover naquele espaço. O problema mesmo é que muitas pessoas brancas (ou cis-héteros, em outros casos) não acreditam que dá pra se colocar no lugar ou só se acostumar com ver o mundo pelo ponto de vista de alguém diferente.
Cada vez mais tenho a impressão que mesmo pessoas que ficam de boa com uma Ariel ou Annabeth negras ou uma Rapunzel indiana não teriam a decência de simplesmente engajar com arte feita por/com/sobre pessoas e culturas que não são brancas e americanas.
Não é estranho ver pessoas que genuinamente acreditam que representatividade é importante, mas que poderiam consumir todas as mídias (cinema, literatura, música, Youtube, fanarts, sei lá) e mesmo assim não engajar intelectual e sentimentalmente com os personagens não-brancos, sendo o enredo deles fortemente centrado em questões raciais/étnicas ou não.
No artigo ““Ela é como se fosse da família”: analisando as representações entre patroas e empregadas domésticas no programa Esquenta!“, as pesquisadoras Marina Caminha e Ohana Boy destacam que, quando se fala em representatividade, o que se quer pensar é
“[...] como algumas narrativas, políticas públicas, ações culturais, entre outros, são construídas com um sentido voltado para tornar visível determinados grupos sociais, atravessando suas crenças, modos de ação e, principalmente, buscando combater o lugar social designado a esses grupos nas narrativas hegemônicas e colonizadoras brasileiras que retroalimentam uma marginalização das classes sociais periféricas”.
Acaba que, num mundo que tem tanta preguiça de falar qualquer coisa sobre a experiência de grupos minoritários – nas partes mais bonitas, mais cruéis, mas também, mais banais e cotidianas – no lugar de qualquer coisa já vista mil vezes em Hollywood, simplesmente inserir pessoas desses grupos parece um grande ato de representatividade.
Só que chega um momento que a representatividade, como um puro enfeite, um aceno que diz “tá vendo, a gente lembra que vocês existem na vida real” se torna algo meio deprimente.
Nenhuma experiência é descolada da nossa raça, classe, gênero, etc., tudo que você passou é atravessado por esses fatores, mas não torna os sentimentos envolvidos alienígenas a alguém diferente. Na maioria das vezes, é apenas uma outra forma de reconhecer experiências humanas comuns. Amor é amor, rejeição é rejeição, fracasso é fracasso, dor é dor, mas as outras cargas e níveis de complexidade são adicionados conforme a experiência particular. Nada disso é ou precisa ser útil (no sentido de ter que servir a um propósito maior para poder só existir), mas se tratando de arte, essas particularidades poderiam ser combustível, não limitações.
Existem coisas que eu e você talvez nunca saibamos exatamente como foram sentidas ou que simplesmente não fazem parte do nosso cotidiano, mas não deveria essa ser justamente a parte mais legal? A parte legal da Rapunzel Indiana para mim (além de ver menos uma loira e do inegável prazer que até mesmo a representatividade pela representatividade é capaz) seria que contos de fadas realmente tem várias recontagens em várias culturas, com suas peculiaridades e com diferentes relações com (no caso de Rapunzel por exemplo) magia, cabelo, relação mãe e filha, coming of age, etc.
A graça seria que qualquer criança poderia aprender a ver o mundo pelo olhar das outras e entender que algumas experiências realmente são universais e conectam elas, e as que não conectam também são coisas legais.
Não é que gente branca não entenda que pessoas negras, indígenas, árabes, asiáticas, etc., têm experiências diferentes: o que parece existir é uma dificuldade em entender que elas têm interioridade em geral. Que ver a Syd em The Bear ou escutar 20 Somethings ou Garden da SZA pode te causar todos os sentimentos de crise dos vinte e de girlhood que ver algum filme da Greta Gerwig, escutar Phoebe Bridgers e Taylor Swift, ler Clarice, Virginia Woolf ou a racista da Sylvia Plath. Mas não, tudo tem que se mediar e medir pela experiência branca.

No livro “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo” da portuguesa Djaimila Pereira de Almeida, a autora fala que a opressão colonial apagou a interioridade negra, o que fez com que esses indivíduos colonizados vissem a si mesmos em paródias rasas. Djaimila afirma ainda que, como escritora, ela queria levar os leitores a refletir sobre como nossa imaginação é colonizada, e que “gostaria de reprogramar meus leitores por meio da empatia e uma catarse puras, irracionais”. E essa parece uma ótima forma de abordar arte em geral.
Isso não quer dizer dissociar os aspectos de raça ou culturais (se não ficou claro ainda). No entanto, por vezes, parece que é só assim que algumas pessoas conseguem finalmente consumir certos tipos de arte. Ninguém parece conseguir achar um meio termo entre entender e excluir totalmente a experiência da cantora Mitski como mulher nipo-americana em “Your Best American Girl”. Mas isso tudo coexiste: identificação, aprendizado, empatia, ressonância, afeição, tudo isso anda mais próximo (mesmo que separados) do que se imagina.
Recentemente, comecei a ler “Aos prantos no mercado” da Michelle Zauner, vocalista da banda Japanese Breakfast, que é filha de mãe coreana e pai branco. O livro gira em torno das memórias de Zauner relacionadas ao luto pela mãe que morreu de câncer, a relação das duas, os sentimentos de Zauner como alguém biracial nos EUA, a ligação com a sua identidade coreana através da comida, etc. Assim que comecei, lembrei de ver um youtuber que gosto falando que não gostou tanto porque não conseguiu se identificar. Acho esse um argumento meio bobo. E não dá pra dizer que não devemos cobrar conteúdos com que o máximo de pessoas possam se identificar, mas ver uma pessoa branca falando isso me deixa um retrogosto muito ruim. Parece que a única forma de conseguir aproveitar algo é com o outro completamente encaixado e dominado por si.

E na verdade são inúmeras possibilidades de novas histórias, de novos sentimentos, de formas que você nunca imaginou que alguém poderia se sentir em uma situação. É isso que é arte. É fazer você ver algo que nunca passou ou pensou e só conseguir dizer “Caralho”. Ou se ver representada/ouvir em voz alta algo que você sempre passou mas nunca conseguiu colocar em palavras e pensa “É ISSO!”.
Mas isso se perde, e toda possibilidade de expandir seus gostos para além dos próprios estereótipos do que é a arte produzida por uma pessoa de outro “grupo” ou “tipo” (por mais mainstream) fica limitada. E aí ninguém imagina que a Megan Thee Stallion fala sobre ansiedade, por exemplo, porque mulheres negras não tem interior, quem dirá uma que está com a bunda de fora. Que nada, toda interioridade fica guardada com a Sylvia Plath dentro da Redoma de Vidro.
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