Pinguim separa os vilões dos “mascarados”
- Bernardo Cruz (Convidado)
- 25 de nov. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de nov. de 2024

É difícil imaginar, à primeira vista, um contexto pior para a chegada de Pinguim (ou The Penguin) ao catálogo da Max. A líder do mercado de super-heróis enfrenta uma crise e a DC vislumbra um novo universo do qual essa série nem mesmo faz parte.
Ainda por cima, Pinguim é uma minissérie derivada de Batman (ou The Batman) de 2021, um filme que não fez grande sucesso — apesar de ser um dos melhores filmes do gênero lançados nos últimos anos.
Tudo joga contra esta série, assim como tudo joga contra seu protagonista, Oswald Cobb. Que tempero é esse que Matt Reeves — diretor de The Batman — e a showrunner Lauren LeFranc têm para justificar esse projeto? Que carisma é esse que justamente o patinho feio de Gotham City poderia canalizar numa história para chamar de sua?
Os vilões mascarados
A resposta do personagem de Colin Farrell é “o corre” — “the hustle”, como ele diz em cena. Desde o início, a história nos coloca diante de um personagem principal que mente, trai e mata. Repetidamente. Em termos de produção, o personagem principal é a coisa mais corajosa da série. Ele não usa nenhum subterfúgio para contornar a própria maldade.
Quem era o referencial da “história de vilão” até aqui? O Venom de Tom Hardy constrói duas ou três cenas fazendo piadas sobre comer galinhas porque, na opinião da Sony Pictures, é perturbador demais alimentar um simbionte alienígena assassino com presas humanas. Esse é um dos muitos exemplos de como a trilogia do Venom se escora na ideia de “galhofa” para se afastar de um ideário de vilania.

Fugir da vilania também é o que faz o aclamado Coringa, de Todd Phillips. Seu Arthur Fleck só mata pessoas que lhe fizeram mal. Essa condição se torna narrativamente fácil quando o filme apresenta, de forma extremamente maniqueista, quase 100% da população de sua Gotham City como pessoas ruins. Ou seja, Coringa nos desafia a questionar a sociedade, mas evita colocar um protagonista realmente disposto a cometer atos que sejam ruins dentro da estrutura moral interna da narrativa (portanto, atos realmente desafiadores para a audiência).
Esquadrão Suicida, o filme que iniciou a cultura recente dos filmes de vilões, procura o recurso do “mal maior” — duas vezes — para redimir seu grupo de psicopatas. Eles não podem ser vilões de verdade, então são todos guardados na gaveta do “anti-herói”.
No fim, esses exemplos de vilania são reduzidos a uma espécie de marra, uma atitude transgressora. Pegando emprestado um termo do futebol, são uns mascarados — termo para jogadores medíocres que fazem firula e tentam parecer mais do que são. Todos esses filmes “jogam de máscara”, escondendo seus vilões.
Oz Cobb e Sofia Falcone
Curiosamente, máscaras são um tema recorrente em Pinguim — ainda que seja em outro sentido. Oz Cobb rejeita seu apelido pejorativo, mas também se aproveita dele.
O Pinguim é um monstro? É literalmente uma máscara construída pelas próteses que cobrem o rosto de Colin Farrell? Ou Oswald é a máscara real para uma essência da qual ele se envergonha?
O fato é que o roteiro não tem vergonha de mostrar as coisas horríveis que seu protagonista é capaz de fazer, mesmo que ele às vezes seja incapaz de admitir algumas delas. Afinal, as mentiras mais contundentes são as que Oz conta para si mesmo.
Tamanha exposição e vulnerabilidade só é total conosco, nunca com os outros personagens. Esse vínculo nos aproxima de Oz — o mágico, o ilusionista que sempre tem uma versão diferente da história.
Nós temos o privilégio e carregamos o peso de ser sua única testemunha. E a série corajosamente abraça o desafio de nos fazer importar com o Pinguim, mesmo admitindo uma verdade que se constroi desde a infância de Oswald: o mundo pode ser ruim, mas ele é pior.
Do outro lado do jogo de máscaras está Sofia Falcone, interpretada por Cristin Milioti com perfeitas medidas de sensibilidade e afetação. Esta personagem denota um entendimento da série a respeito da própria “mitologia” do que significa ser um vilão em Gotham City. Isso porque Sofia é uma encarnação da transição entre as duas “épocas” do crime na cidade. A primeira é a época da máfia tradicional, de ambientes majestosos e figurinos elegantes. Essa época se encerra com “O Longo Dia das Bruxas” — quadrinho adaptado em The Batman, que marca a queda da família Falcone.

A segunda época é a dos super-vilões, dos maníacos carnavalescos que compõem a galeria de vilões do Homem-Morcego. Essa época é canalizada nos atos e no olhar de Sofia, mas também em seu figurino e penteado — principalmente a partir do terceiro episódio.
Esses elementos da linguagem cinematográfica contam a história de uma mulher em guerra com as identidades que lhe são dadas. Ora a maníaca Carrasca, ora a mafiosa Falcone, Sofia vai sendo definida por todas as máscaras que nunca escolheu usar — desde sua condenação ao Asilo Arkham até sua riqueza herdada. Nesse sentido, não há escape para ela.
Seu lugar como vilã dentro da série de um outro vilão é cheio de nuances. De alguma maneira, os episódios constroem o argumento de que ela é mais digna de torcida do que o próprio Oz. Sua motivação emocional de vingança a deixa próxima da condição de anti-heroína. Essa inversão revela e reafirma aos poucos quem é o verdadeiro vilão da história.
A série desafia o julgamento de quem assiste ao brincar com as dinâmicas de classe que permeiam Oz e Sofia. Ela mantém uma certa integridade por força de sua personalidade ou porque, assim como Bruce Wayne, ela veio da elite de Gotham acreditando que suas motivações pessoais justificam a fúria que ela agora despeja nas ruas?
O clímax de Sofia trazer Nirvana — “Where Did You Sleep Last Night” — na trilha sonora é apenas um dos muitos recursos de linguagem que a minissérie usa para aproximá-la do Batman de Robert Pattinson, que faz as caras e bocas de Kurt Cobain e traz “Something In The Way” em seu filme.
“Pessoas como você não entendem”, Oswald diz. Afinal, que lugar de fala uma Falcone (ou um Wayne) teria para julgar um filho das ruas sem eira nem beira? Poderia até ser fácil dar esse tipo de resposta, mas é justamente Oz quem está lá para confrontar Sofia sobre tudo isso.
Esses questionamentos são legítimos vindos dele? Ou será que o mestre da distorção de palavras só está lançando mão de mais uma cortina de fumaça para justificar seus atos para si mesmo? Sofia pouco se dobra diante da língua de prata do Pinguim, mas o Batman especialmente instável deste universo vai ter um grande desafio mental pela frente.
Um sonho americano
Existe uma longa tradição de séries originais HBO que discutem a sociedade estadunidense através das histórias de protagonistas criminosos. Assim como Tony Soprano e Walter White, Oswald Cobb é um personagem cuja jornada provoca uma série de reflexões sobre o sonho americano.
As relações que o vilão estabelece ao longo da série são recorrentemente utilitárias e até transacionais. Em muitos dos casos, desde a família Maroni até a Eve Karlo de Carmen Ejogo, esta maneira cínica de se associar é mútua. No caso de Eve, inclusive, o afeto é transformado em serviço a partir do princípio da escassez. No encontro dos anseios emocionais de Oz com as necessidades extremamente práticas de Eve, se estabelece uma espécie de mutualismo no qual ele se permite enganar e ela consegue sobreviver — afinal, quem daria afeto ao Pinguim por vontade própria?
O amor de sua mãe é condicionado, como uma cláusula escrita em um contrato. A amizade de Sofia é limitada à cortesia de uma patroa simpática com um motorista confidente que precisa saber seu lugar. O grande poder de Oz é navegar nessas relações, seja por instinto ou compreensão delas. É assim, enxergando a todos como recursos à disposição de seu empreendimento, que Oswald faz seu “corre”. As patologias do sistema prisional até o escapismo da população diante de uma Gotham fustigada por todo tipo de injustiça, toda miséria é uma oportunidade de mercado.
Inclusive a de Victor Aguillar, uma vítima pobre do ataque destrambelhado do Charada contra a elite egoísta em The Batman. Vic entra em cena da mesma maneira que Jason Todd, o segundo Robin, aparece na vida do Batman nos quadrinhos. Pensando sobre como Matt Reeves constroi seu universo buscando a adaptação mais realista possível do universo dos quadrinhos, essa similaridade parece ser um argumento bastante intencional — e igualmente cruel. Se Jason é arrastado para uma vida de vigilantismo, Vic é aliciado ao crime assim como muitos jovens que vivem à margem do sonho americano — ou brasileiro.

Vic é a resposta para “quem daria afeto ao Pinguim por vontade própria?” e também para as consequências desse afeto no mundo escuro e monocromático desenhado pela fotografia de Darran Tiernan. Mundo que pertence aos piores — e não aos mascarados.
A vitória do Pinguim vem ao custo de adequações, é verdade. O Maserati dá lugar a um Rolls-Royce, mas ainda em roxo. O paletó quadriculado roxo de sua primeira aparição em The Batman sai para entrarem o terno preto e a cartola.
Tudo para que o sonho infantil de ser mafioso ganhe nuances políticas que parecem até mais apropriadas para Oswald e seu sonho americano de sair debaixo, crescer — como um cogumelo numa caverna — e conquistar o mundo.
O roteiro cria metáforas de uma vitória imperfeita para Oz, como o desfecho anticlimático de Sal Maroni, filmado e iluminado com uma certa banalidade que é incomum na mise-en-scène da produção. Já as simbologias mais potentes vêm de sua mãe: um olhar perdido e uma mão que só afaga a cabeça do filho se for forçada.
Assim, a justiça poética proíbe o vilão de realizar o tal sonho infantil exatamente como ele sonhou na época em que olhava com admiração e ambição para o medíocre Rex Calabrese. Mesmo superando seu ídolo, Oz vê escapar por entre os dedos o reconhecimento que desejava.
Pinguim é a adaptação de quadrinhos que melhor se apropria do objetivo de contar a história de um vilão. A minissérie articula bem a linguagem dos quadrinhos, a tradição televisiva e a herança cinematográfica do filme do qual se deriva. Tudo isso em volta de um dos personagens mais odiosos e mais corajosamente construídos no contexto da cultura pop contemporânea. Cultura esta que flerta com a vilania, mas quase sempre é seduzida pela máscara.
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