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O Preto no Branco em Identidade (2021)

Uma arte subvertendo a ideia original do poster do filme em jogo de cores entre o preto e o branco

Lançado em 30 de janeiro de 2021, Identidade é estrelado por Ruth Negga, no papel de Clare, e Tessa Thompson, no papel de Irene. Tendo sua direção executada por Rebecca Hall, que estreia como diretora, em meio a sua carreira como atriz.


O longa, distribuído pela Netflix, se passa nos anos de 1920 no subúrbio da cidade de Nova York, em meio a um contexto racista, onde acompanhamos o reencontro de duas protagonistas negras de pele clara, que seguiram por diferentes caminhos durante a luta contra o colorismo. Filmado em preto e branco, adapta o livro Identidade (Passing), de 1929, escrito por Nella Larsen. Com a adaptação da obra original para a sétima arte, a trama se desenrola em três atos, que servirão de referência para esta análise.


Primeiro Ato – O Reencontro

O momento de reencontro entre as protagonistas na rua
Foto: Reprodução/Netflix

O filme se inicia com a ida de Irene a uma loja de brinquedos em busca de um presente para seu filho, em um dia quente. Com roupas elegantes e compridas, se destacando com a presença de um grande chapéu, com o intuito de esconder suas características étnicas, Irene se passa por uma mulher branca, para frequentar uma área mais nobre da cidade e entrar nas lojas sem ser alvo de ofensas.


Nos primeiros minutos do filme somos capazes de compreender a dualidade que estará presente ao longo de toda a trama. Em uma loja de brinquedos, nossa protagonista se abaixa para pegar uma boneca de pele escura, que uma senhora branca deixou cair logo após tecer comentários a respeito da indumentária do brinquedo, que possuía roupas de uma faxineira. Irene, então devolve a boneca caída, sem olhar aos olhos da senhora, com um sorriso no rosto e sem pronunciar uma única palavra, como se estivesse se contendo. “Que mulher, gentil”. Recebe elogios, ao se direcionar a saída.


Assim que pisa do lado de fora da loja, vemos um homem branco cair de repente na calçada. Apesar de estar fantasiada, Irene teme a chegada da polícia. Já que sua presença, em uma possível na cena do crime, a única preta em meio aos brancos, a tornaria culpada por um simples julgamento racista. Com medo e pela falta de segurança sobre sua persona branca, a vemos fugir em um táxi para um hotel, ocasionando o reencontro.


Em meio a um ambiente branco, com luzes fortes, presenciamos o local ficando cada vez mais claro, algo que se torna frequente, sempre que Clare entra em cena. As duas amigas de infância passam a trocar olhares, com certa estranheza, na tentativa de sanar o irreconhecível, beirando o perturbador, através de longas encaradas. Em meio ao desconforto, as duas se levantam e acabam conversando.


Ao contrário de Irene, Clare não utiliza longas roupas para esconder seus traços, muito menos um longo chapéu. Com cabelos loiros e uma forte maquiagem, se entregou à fantasia de se passar por uma mulher branca. Fantasia essa, que através de um certo cinismo, fez com que uma máscara tomasse conta de sua verdadeira face.


Ainda no começo do longa, nos é apresentado um debate sobre sermos frutos do meio em que vivemos. Clare, cresceu em um ambiente branco e por isso tem vergonha de ser negra. Casada com um banqueiro, notou que o dinheiro se associava à cor e ao poder, por mais que ela acreditasse que: “Ser branco deveria satisfazê-los…”. Por outro lado, Jhon, seu marido, é um racista alienado, fruto de um sistema branco. Sem saber que sua esposa é uma mulher de preta, expressa sua visão sobre a população afro americana ao reproduzir sua alienação:


Nunca os vi, mas a mídia me diz que são ruins. Por isso, os odeio

Segundo Ato – O Baile

O momento do encontro entre Clare e Irene no baile
Foto: Reprodução/Netflix

Após o fim do primeiro ato, acompanhamos Irene voltando para casa no subúrbio e somos apresentados a sua família, seus dois filhos e seu marido, Brian Redfield. Em meio a diálogos incrivelmente construídos, que permeiam todo o roteiro, descobrimos que Irene trabalha na gestão de um grupo de caridade para pessoas negras e que estaria organizando um grande baile.


Horrorizada ao descobrir que sua antiga amiga de infância se passa por uma pessoa branca, negando sua negritude. Irene passa a se questionar sobre seu desejo suprimido de se sentir na pele branca. Sentir seus privilégios e se beneficiar do colorismo, fortemente presente onde vive. Este desejo vai sendo deixado de lado, devido aos seus afazeres e sua relação com seus filhos, ambos pretos retintos, como o pai. No entanto, a visitas de Clare, a sua casa, que se tornam cada vez mais frequentes, trazem de volta um sentimento de impotência perante uma figura branca, apesar de falsa.


Durante o baile, somos apresentados à figura de Hugh Wentworth, um escritor branco, amigo de Irene. Neste ambiente, aparentemente amistoso, o longa aborda mais um conceito relacionado ao racismo social, o branco predatório, que enxerga a figura negra com uma presa. Nos mostrando este estereótipo ao colocar em cena, pessoas pretas dançando, ao centro da festa, e pessoas brancas, observando de forma sedenta nos arredores.


Apesar de Hugh ser uma figura caucasiana, explica não se interessar sexualmente pela maioria presente. Casado e fascinado pela cultura, o autor busca, simplesmente, o conhecimento do diferente. Como a própria organizadora da festa diz, sobre essa relação quase que fetichista: “Pessoas brancas vem aqui, não porque simpatizam com a causa, mas para ver pessoas negras.”


Terceiro Ato – As consequências

Irene chorando aos braços de Hugh
Foto: Reprodução/Netflix

Através de transições, demonstrando a passagem do tempo e a mudança de estação para o inverno. O terceiro e último ato, se inicia com uma cena mostrando o horizonte, coberto de neve, embasado, se esclarecendo na companhia de uma trilha simplória de um piano.


Com a ida de Clare para a Europa, Irene passa a perceber como sua amiga havia se aproximado de sua família, principalmente de seu marido. Tomada de ciúmes e de um vazio incomensurável, se sente substituída novamente por uma figura branca. Como se tudo que conquistou com esforço e dificuldade, na luta contra o colorismo, sendo uma mulher preta, fosse irrelevante quando aquela persona, que se comporta como caucasiana, assume seu lugar. Clare tornou-se definitivamente branca aos olhos de Irene. Aquela mulher parecia roubar sua vida.


Apesar de estar desabando emocionalmente, nossa protagonista, insiste em se conter, como no início do filme, na tentativa de manter sua postura de mulher forte e mãe. Não há espaço para fragilidade. Neste contexto de maternidade, Irene é constantemente confrontada por seu marido sobre a forma de criação das crianças. A mãe possui medo de que seus filhos passem pela mesma opressão que ela passou. Clare, deu um jeito de evitar isso e agora, Irene, tenta replicar algo similar aos filhos, não com o uso de uma máscara, mas por meio da adaptação a sociedade vivida.


Protegendo os pequenos da realidade que os cercam, evitando assuntos que envolvam o racismo, os colocando numa bolha. Já Brian, é o completo oposto, gerando um contraponto ao tentar preparar seus filhos para o mundo, causando um rápido amadurecimento das crianças. Além de trazer à tona ideias frequentes sobre se mudar para outro país. A mãe deseja ficar, pelo medo da mudança, e o pai deseja mudar de realidade pelo bem da família.


Retomando ao estado mental e emocional fragilizado de Irene, este se torna evidente em sua aparência. O visível incômodo pelo próprio reflexo e o clima, atrelado a iluminação ambiente, reflete suas emoções. Com Clare, tudo era claro e quente, sozinha, o escuro e o frio prevalecem. Clare traz o branco para a cena, como no pôster do filme.


Por fim, a melancolia leva a trama em direção a morte. Em meio a neve, o preto no branco se torna gráfico e a conclusão de uma das protagonistas se aproxima. A morte é branca como a neve. Assim como os ossos da figura de capuz escuro, que empunha uma foice e assim como um homem caucasiano, coberto por um paletó preto, sua morte veio em meio a ‘branquitude’ que permeava o âmago do seu ser.




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