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Depressão, identidade e a busca pelo heroísmo em “Kalledy”

Atualizado: 8 de jun. de 2024


Kalledy

Um desabafo poético sobre si mesmo e sobre quem gostaria de ser. Essa é a definição que pode ser feita sobre o álbum “Kalledy”, o lançamento mais recente de Link do Zap. Conhecido por suas músicas de zueira, Link se tornou um dos principais nomes do “shittrap”. Entretanto, além dos sons bem humorados, o artista também tinha algumas produções com uma pegada mais séria.


Em seu mais novo trabalho, o músico apresenta uma reflexão sobre as duas faces de sua vida: a do cantor e a do cara comum. A começar pelo título do projeto, que leva o nome verdadeiro do artista. Através de apenas seis faixas, Link — ou melhor, Kalledy — consegue abordar temas como depressão, falta de propósito e busca por identidade.


Além do nome, a capa do álbum já revela o teor pessoal presente nas músicas. O projeto é estampado com a foto de Link ainda criança em uma praia. No topo da imagem, o título do álbum, que também possui um background pessoal. Em entrevista ao Rabiscos Tortos, o cantor revelou ter tirado a tipografia de um desenho que sua irmã de sete anos fez para ele.


“Kalledy” é uma viagem de autodescoberta. Com um tom melancólico do início ao fim, a produção apresenta uma visão um tanto quanto niilista sobre a vida de famoso. Não só isso, como também discute temas sensíveis e que revelam um pouco sobre quem é a figura do “Link do Zap”.



memórias póstumas do herói



A primeira faixa do projeto já indica um tópico que será recorrente em todas as canções. Por falar sobre todas as fases da vida do artista, o principal tema do projeto é justamente a vontade de ser um herói. Quem nunca desejou ser um herói quando criança? Embora pareça um sonho impossível, a vontade de ajudar os outros pode permanecer mesmo na vida adulta.


Porém, esse desejo de ajudar o próximo traz consigo um grande fardo. “Memórias póstumas do herói” já começa o álbum de maneira excelente. De forma genial, Link narra a perspectiva de um super-herói que está cansado de seu próprio ofício. O personagem não aguenta mais o fato de que precisa todos os dias salvar o mundo e ainda sustentar a figura de alguém inabalável.


Em troca de machucados
Mesmo ganhando eu me senti pior
Mesmo ganhando não fui vencedor
E no final que se foda os troféus

Apesar de manter a imagem de invulnerável, o herói é apenas um cara tentando fazer a coisa certa. Assim como todo mundo, ele é alguém que sangra e chora. Alguém que possui suas próprias limitações e que se cobra mais do que deve. A música estabelece um claro paralelo entre o herói e o próprio Kalledy, com cada verso servindo como uma forma de desabafo para tudo que o artista precisou suportar.


A música é uma carta para todos aqueles que se propõem a ajudar o próximo. Num mundo egoísta em que as pessoas estão mais preocupadas consigo mesmas, uma atitude altruísta pode ser considerada algo de um verdadeiro herói. Apesar disso, esse hábito de se preocupar mais com as pessoas ao seu redor do que com si mesmo acabou por trazer sérias consequências.


Todo mundo quer ser salvo
Mas ninguém quer salvar
Por isso existe muito mais vilão do que herói
Por isso que me ofereceram mais cigarro do que ajuda
Por isso que me lotaram de ideia que me destrói

Ao final da música, Kalledy recita o início de uma carta de suicidio que ele escreveu no início de 2023. Dessa forma, o músico deixa a entender que essa busca de ser o herói daqueles que estavam ao seu redor acabou, de alguma forma, lhe prejudicando. Não que o altruísmo seja algo ruim, mas é que ninguém é invulnerável. Se você tentar ajudar a todos e negligenciar seus próprios problemas, uma hora ou outra, vai ter seu preço.


No fim, nem mesmo um super-herói consegue resolver os problemas de todo mundo.



lágrimas no celular



Existe uma certa maldição envolvendo todos os artistas que se tornam famosos por conta de músicas engraçadas. Com o tempo, o público começa a reduzir o cantor a apenas um personagem e isso gera uma série de problemas, principalmente relacionados à própria identidade. Imagine lutar sua carreira inteira por reconhecimento e, quando finalmente consegue, percebe que não era o que imaginava.


Esse é o tipo de experiência que está suscetível de acontecer em qualquer forma de fama. Entretanto, o caso dos artistas musicais se torna mais interessante por ser o que apresenta uma relação mais palpável com o público. Imagine encher uma casa de show com pessoas que juram te amar, mas no fundo elas não sabem nada sobre quem você verdadeiramente é.


Eu fiz um show lotar e me senti sozinho
Eles esquecem que sou o Link só no palco
Se me trombar vou te dar meu melhor sorriso
Chegar em casa e me afundar no álcool

A segunda faixa do álbum parece ser uma continuação direta da primeira, o que reforça a necessidade de escutar as canções na ordem correta. Em “lágrimas no celular”, Kalledy reflete sobre a desilusão que sofreu ao alcançar a fama. O artista desabafa sobre o fato de que, apesar de ter conseguido o sucesso que sempre quis, ele ainda se sente vazio diante da realidade que vive.


Outro ponto que Link aborda é a síndrome do underground. Basicamente, quando todo artista pequeno começa a fazer relativo sucesso, aqueles que o acompanhavam começam a criticá-lo apenas por ter conseguido reconhecimento. De certa forma, existe uma correlação entre o mainstream ser algo negativo e a maioria dos artistas famosos serem ruins.


Agora que eu não sou um fudido, me acham chato
Eles preferem ouvir um autorretrato, só que o problema é que tô sempre evoluindo
Eles tão mal-acostumado (Fazer o quê?)
No fim, 'cê salvou o mundo, mas não se consertou

O tema sobre heroísmo e “abraçar o mundo” retorna de novo, mas de forma mais sutil. A canção parece também falar sobre uma pessoa que passou pela vida de Kalledy, mas que precisou ir embora. A grande tragédia do herói é ter uma vida fadada à solidão.


​oceano



Durante a infância, a maioria das pessoas tem como imagem máxima de heroísmo o seu próprio pai. A figura paterna sempre se apresenta como a de alguém que sempre vai estar de pé, inabalável e será o responsável por resolver todos os problemas que possam surgir. Conforme crescemos, essa relação pode ir se modificando, mas o sentimento de querer ser igual ao próprio pai permanece.


Em seu papo com o Rabiscos Tortos, Link conversou um pouco sobre sua relação com seus pais. Por serem muito religiosos, eles demoraram para entender que pessoa era aquela que Kalledy estava se tornando. Mesmo envoltos em muito receio, com o tempo os três foram melhorando essa situação. Pensando nisso, a música “oceano” é justamente um desabafo sobre a relação de Link com seu pai.


E a sensação dе realizar meu sonho
Foi como descobrir que o One Piece é só um baú vazio
Cê sente falta de quem eu era, eu admito, eu também sinto
Em algum momento eu que me tornei tão frio

Existem poucas coisas que machucam mais do que decepcionar o próprio pai. Perceber que a figura que te dedicou amor durante a vida inteira não aprova a sua versão atual é um choque que ninguém deveria presenciar. Essa experiência levanta dúvidas sobre as escolhas que fizemos e o que sobra é a saudade de ser o filho que era orgulho de seu próprio pai.


A canção narra a relação conturbada que o artista desenvolveu com seu pai. Apesar das inúmeras brigas, Link demonstra ter um grande receio por ter se afastado do homem que ele admirou a vida inteira. Retornando à imagem do herói, Kalledy deixa a entender que seu desejo por ajudar outras pessoas surgiu por inspiração do seu pai — mostrando que, apesar de tudo, ele ainda quer ser como ele.


Eu tô tentando ser um herói como você
Eu tô salvando todo mundo o dia inteiro
E é triste eu não conseguir poder te ver
Porque antes de salvar alguém, você que me salvou primeiro

É possível que essa relação conturbada tenha sido um dos motivos que acabaram o levando a escrever sua carta de suicidio. De toda forma, o final de “oceano” deixa a entender que eles conseguiram se entender. A música se encerra com um áudio do pai de Kalledy se mostrando feliz com a postura do filho em querer ajudar outras pessoas, mostrando que o cantor finalmente conseguiu o reconhecimento que desejava.



presente de d



O fim de um relacionamento nunca é algo fácil de se lidar. Ver a pessoa que você um dia cogitou ser o amor de sua vida indo embora é algo devastador. As mudanças que você buscou, as coisas que deixou para trás e os sonhos que abriu mão, nada disso importa mais. Todo esse sacrifício foi em vão e o que resta é aceitar. Essa é a premissa de “presente de d”.


Como o próprio refrão explica, a música fala sobre aqueles relacionamentos que acreditamos ser obra divina, mas na verdade acabam te levando para o inferno. é interessante analisar que nesse ponto o álbum já se tornou uma espécie de lista de possíveis motivos que levaram a depressão de Kalledy. Outro aspecto recorrente é o uso de cigarro e bebida como forma de escape.


E de noite, quando eu fumo um cigarro
Lembro que antigamente eu já cheguei a orar
Lembro que eu já chorei quando olhei pro céu
E quem me respondeu foi você no meu celular

Apesar de falar sobre uma desilusão amorosa, Kalledy não resume a canção apenas nisso. Outro tema abordado é a idealização de pessoas. Existem algumas decepções que são culpa apenas das nossas expectativas frustradas e não necessariamente de alguma falha da pessoa. É preciso saber lidar com a forma com a qual enxergamos a outra pessoa, evitando ao máximo realizar nela algo que ela não é.


Próximo ao fim da letra, Link começa a julgar o novo parceiro da garota que o deixou. Isso reflete a realidade de algumas pessoas que não conseguem superar o fato do relacionamento ter chegado ao fim. Por sorte, o nosso “protagonista” parece ter superado essa fase, ao ponto de entender que bitches come and go.


Cantando sobre alguém que nunca existiu
Eu sei, eu te criei na minha cabeça
Preferia que tivesse me matado (Preferia)
Não queria ter quebrado a minha promessa (Uh, não)

A música não é apenas sobre uma pessoa que arrasou o coração do cantor, mas também sobre você conseguir extrair o melhor do que há de pior. De acordo com o próprio Link: “Muito presente que recebi nessa vida mais me tirou do que deu. Mas, como com tudo nessa vida, eu aprendi a transformar isso em arte pra não sair no preju” 



antes



A penúltima faixa é uma espécie de retrospectiva de tudo que o cantor já abordou até então dentro do álbum. A música funciona como uma forma do artista gritar sobre tudo que ele está passando no momento. Kalledy está desiludido com a fama e, depois de passar tanto tempo correndo atrás do sucesso, ele percebeu que os holofotes só trazem problemas e o que importa mesmo são os bons momentos.


Tô pouco me fudendo pra coisa cara
Tô valorizando mais esses momento
De quando eu saio
E bebo um litrão com o Zannot

Além de claramente se mostrar decepcionado com a fama, o artista também volta a falar sobre o tema que abordou em “lágrimas no celular”. O cantor reflete sobre como a vida de famoso é uma pura ilusão, ao ponto de que as pessoas que conhecem “Link”, não sabem quem é o “Kalledy”. Enquanto se afoga nos próprios vícios, tudo o que resta é o desejo de voltar a ser igual antes.



nunca mais vou ser CLT



Por último, mas não menos importante, “nunca mais vou ser CLT” encerra o álbum de forma tão genial quanto ele começou. A música é uma grande crítica ao sistema capitalista e uma reflexão sobre como buscamos em vícios um alívio para nossa dor. Embora tenha sido abordado levemente em outras canções, aqui Kalledy aborda a fundo sua relação com o cigarro.


Se até então as canções mostravam motivos para a decadência psicológica sofrida pelo artista, a última faixa do álbum mostra a forma com a qual ele lidou com isso. Fumar se tornou uma forma de suportar a rotina cansativa e pouco recompensadora da vida de CLT. O refrão comprova a ideia de que, nesse momento, Kalledy já estava no fundo do poço e mesmo assim mantinha a imagem de “bobo da corte”.


Meu quarto cheira a cigarro
E, quando eu era menor, eu fazia até cara feia
Mas eu acostumei com o cheiro
Que nem percebo mais a diferença hoje em dia

Se o primeiro verso fala sobre como Kalledy lidava com sua rotina, o segundo descreve como era essa rotina. Durante sua experiência trabalhando como garçom, o músico precisou conciliar sua vida de CLT com a rotina de shows. De dia Kalledy, de noite Link do Zap. Durante esse período, ele ainda não podia se dedicar apenas à música, tendo que levar uma rotina duplamente cansativa para sobreviver.


Desse modo, a segunda parte da canção também se torna uma ampla crítica ao sistema capitalista. Usando sua própria vivência como exemplo, Link argumenta sobre o quão cínica é a rotina de alguém que trabalha como carteira assinada. Você tem que dar a vida por um emprego que te entrega o mínimo para sobreviver, sendo fadado a encarar todos os dias essa rotina infeliz. 


O meu emprego era uma merda e eu saí dele
Todo emprego é ruim e eu nunca descanso
Mas o almoço tem que tá na mesa todo dia
Então eu ouço esporro do meu chefe e fico manso

“nunca mais vou ser CLT” é o fim de uma odisseia. Esse é o único clipe do álbum em que o artista aparece sem máscara, o que pode representar finalmente uma aceitação de quem ele é. A canção termina com o final da carta que ele havia começado a ler em “memórias póstumas do herói”, mostrando o encerramento de um ciclo. Por essas serem suas “últimas palavras”, Link aparece “morto” no final do clipe, marcando o encerramento de uma obra-prima e a morte do seu antigo eu.



O que podemos tirar disso tudo


“Kalledy” consegue cumprir com eximio sua proposta. Todas as faixas servem como uma forma de expressão sobre quem é a pessoa por trás da figura de “Link do Zap”. O artista desabafa sobre o que vive e as formas com as quais usa para lidar com a recente fama. Ao fim, Link consegue provar que ele vem sendo um verdadeiro “super-herói” ao conseguir suportar toda essa pressão com um sorriso no rosto.


O sentimento de saudade de um tempo que não vai voltar percorre todas as canções. Ao mesmo tempo que relembra o tempo da infância, o artista também reflete sobre quem é agora. O álbum não fala apenas sobre uma fase específica da vida de seu autor, mas de toda a trajetória que ele precisou superar para se tornar quem é hoje. E mesmo com tantas mudanças, ele continua sendo o mesmo Kalledy de sempre.


“Esse projeto é um desabafo mas, acima de tudo, é algo para me lembrar todos os dias quem eu sou. Me lembrar do que realmente importa no final. Os anos passam e a gente sempre muda, mas acredito que certas coisas continuam e elas que formam a nossa individualidade”


Durante sua conversa com o Rabiscos Tortos, o artista comentou que muitas pessoas ainda não entendem que ele faz músicas para si mesmo. Esse álbum mais recente é a prova máxima disso. De acordo com o próprio Kalledy, esse foi o projeto que lhe custou muita coisa e que sem dúvidas foi o mais importante da sua vida.


O álbum mostra que, mesmo depois da infância, a busca por ser um herói daqueles que estão ao seu redor ainda é um objetivo nobre. O músico admite que não buscava sucesso ou dinheiro com o lançamento, mas que apenas queria ser sincero e desabafar. Mal sabia ele que, através da sinceridade, conseguiria lançar seu projeto mais complexo até então.


Fim do diário do herói.

1 Comment


Guest
Apr 10, 2024

incrível texto e uma bela interpretação

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