CRÍTICA I Um Golpe de Sorte em Paris: Acasos e traições
- Marina Branco
- 19 de set. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de set. de 2024
Se o 50° filme de Woody Allen pudesse ser resumido em uma palavra, seria traição. Da esposa para o marido. Do marido para a esposa. Da sogra para o genro. Da filha para a mãe. E do destino, para um protagonista.
“Um Golpe de Sorte em Paris” conta a história de Fanny, uma jovem criativa que se viu presa em um casamento com Jean - que poderia até ser definido como um empresário ou algo do tipo, mas mais vale definir como ele mesmo se diz. “Um homem que torna os ricos, mais ricos”. Em meio a uma vida farta e com todas as facilidades possíveis, a sorte, o acaso ou o destino levam Fanny a (re)encontrar Alain, um amigo da época do colégio que a faz repensar toda sua vida.

Olhando por cima, o filme parece ser um romance, e contar a história de um triângulo amoroso. Mas, ainda assim, eu poderia te contar tudo sobre a relação dos três protagonistas e nem tocar no real tema do filme. Isso porque, a partir de uma história simples e bem clássica, o longa se preenche de reviravoltas que te mostram o quanto o romance nada mais era do que um pano de fundo para o que realmente estava prestes a acontecer.
A Sorte
A primeira metade do longa conta - e de maneira quase exemplar, diga-se de passagem - a história dos três. Em uma atuação deslumbrante, Lou de Laâge leva Fanny entre dois mundos, perfeitamente bem delimitados pela fotografia e figurino. Às vezes, a protagonista está com seu marido, em quadros sempre friamente coloridos, e roupas sóbrias e chiques. Em outros momentos, está com o amante, rodeada de cores quentes e saias alegres. Se a intenção era transitar entre duas sensações diferentes, além da excelente atriz, a imagem feita por Vittorio Storaro o sabe fazer com perfeição.

Entre um e outro, quem assiste a obra sente toda a angústia junto com Fanny. E aqui, mora um grande trunfo do filme, que escolhe não forçar, até então, Jean como um vilão, ou até mesmo alguém que mereça ser traído como é. Ele é um bom marido, ama Fanny incondicionalmente, e isso é inegável. Para desenvolver a trama da traição, Allen não precisa se escorar na diminuição do traído, colocando todo o peso e culpa na protagonista. Se tenta o fazer, é por meio das viagens sem graça que Jean planeja - mas que podem facilmente serem vistas como algo comum, e que se faz para alegrar quem amamos. Mesmo nelas, ele nunca força Fanny a fazer o que não quer, dando espaço para sua paz e individualidade.
Por essa e outras, o personagem de Jean é extremamente complexo, profundo e bem vivido por Melvil Poupaud. Indo de um extremo a outro, ele sabe trazer o carinho e o romantismo de um homem cheio de mágoas e perigos dentro de si, sendo ao mesmo tempo um ponto de confiança e desconfiança total. Quando Jean sabe algo, é nítido o medo que precisamos ter e temos dele. Quando não sabe, age como um puro e pleno inocente. O personagem não é genérico, não é simples, mas é muito bem interpretado.

Já não se pode falar a mesma coisa de Alain, que cabe em todos os moldes de mocinho de filme de romance. Entre poemas, livros com histórias de amorzinho, frases fofas e declarações que chegam a irritar de tão frequentes, o personagem de Niels Schneider é o mais raso e comum possível. Até mesmo seu outro casamento, que poderia ter algo de história, é em função de Fanny, que já não estava em sua vida há anos. A sensação é de que Alain é um puro coadjuvante, que não pensa nem vive por si, mas sim em função de alguém que só esteve em sua vida por frações de tempo. Em nada surpreende, em nada interessa. Não é que o ator tenha feito trabalho ruim, muito pelo contrário. É simplesmente um personagem que cumpre sua proposta em ser básico, talvez para que os outros pontos do triângulo pudessem brilhar com mais força.
Algo que funciona inegavelmente bem com Alain é a localidade. Paris, a cidade do amor, é muito bem usada na construção do romance proibido entre os dois. Enquanto as cenas com Jean são sempre em espaços fechados, Fanny e Alain se escondem em pleno ar livre, usando e abusando de Paris. Não só de Paris, como também do francês, na primeira produção dentre as cinquenta de Woody Allen que não é em inglês. Se Paris era o cenário para o livro de Alain, foi igualmente boa para o filme de Allen.
Um problema, aqui, talvez esteja na maneira com que o romance foi construído às pressas, sem tempo para que o público se apaixonasse por Alain junto com a protagonista. Em meio à correria, tudo parece ser um desleixo, até que chegamos à segunda parte do filme e vemos tudo ser justificado. Foi corrido, e é mal contado - porque não é a história de Fanny e Alain que o filme vem contar.
O Azar
Se o filme dá a entender, inclusive no pôster, que vai contar a história de Fanny, acredito que ele conta muito mais a história de Jean. Exceto a trama não incluída da morte misteriosa de seu antigo sócio, todas as cenas se encaminham para entendermos a vida e as escolhas do personagem, que não é nada do que aparenta. Quem vai assistir a “Um Golpe de Sorte em Paris” esperando um filme de amorzinho, não recebe. E quem assiste a Melvil Poupaud esperando um galã, não o encontra.

Desde a coragem inegável em matar um personagem essencial para a trama logo de cara, e de maneira tão simples e absurda que deixa a sensação de que ele ainda vai reaparecer, o filme surpreende e encanta à medida que vai avançando. Entre absurdos e coisas inaceitáveis, é na segunda parte que ele realmente justifica a tese de que o acaso é o que forma a vida, e que tudo nela é imprevisível. Na teoria, a imprevisibilidade estaria no encontro aleatório entre Fanny e Alain. Na prática, Jean é a própria imprevisibilidade.
Em um filme de suspense mais protagonizado por Melvil e Valérie Lemercier, que interpreta Camille, mãe de Fanny, ambas as partes fazem um excelente trabalho. Enquanto a personagem de Lou segue em sua inocência e passa a ser secundarizada, os dois desenvolvem uma trama quase policial, deliciosa em suas investigações e descobertas.

Existem falhas, é claro. Gravações perfeitamente audíveis de conversas atravessadas, problemas complexos resolvidos simplesmente ‘na porrada’ e cenas importantes sem interrupção tornam toda a história um pouco irreal, mas nada de inaceitável. É aqui, na parte do azar e de Jean e Camille, que o filme que prometia ser bom, mas esquecível em meio a milhares de produções sobre traição, começa a se tornar memorável.

O Golpe
O absurdo, o imprevisível, o destino e o inaceitável vem, de verdade, nos últimos segundos de trama. Em meio à retirada da venda que tornava Fanny quase cega de inocência, a suposta protagonista é mais uma vez deixada de lado, enquanto o real protagonista tem um momento inacreditável.
O golpe, talvez, seja mais na audiência do que em Jean, Fanny ou Alain. Em um final simplesmente surreal, a imprevisibilidade da vida é comprovada, com uma trama que poderia ser facilmente nomeada de ‘solução preguiçosa para problemas complexos’. Mas não é. Aqui, o filme sabe acabar no momento perfeito, fazendo com que todos saiam da sala de cinema em choque, e entendendo que, em um filme sobre o acaso, tudo seguir a lógica do provável seria, no mínimo, ironia. Não é, e sabe trazer o acaso também para quem assiste.
“Um Golpe de Sorte em Paris” é a imprevisibilidade em um filme. É a história do acaso, da traição, do azar e da vida, longe de ser feita de poemas e romances. Com uma protagonista quase que de fachada, o longa esconde seu real personagem e sua real trama por trás de uma imagem de triângulo amoroso, que guarda o que tem de realmente interessante para quem decide dar uma chance - nunca desperdiçada - a mais um filme de Woody Allen.
Nota: 4/5
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