Crítica I Assassino por Acaso: Um passeio cômico por quem nós somos
- Marina Branco
- 13 de jun. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 20 de jun. de 2024
Como você consegue ter certeza de quem você é?
Todos nós nascemos com características físicas definidas. Um tipo de cabelo, uma cor de olhos, um tom de pele, uma altura a ser atingida. A maior parte delas vem pronta, e segue conosco ao longo da vida. Mas, quando falamos sobre quem somos por dentro, será que é possível escolher como somos? Escolher se somos tímidos ou extrovertidos, otimistas ou pessimistas, interessantes ou entediantes?
O enredo de Assassino por Acaso te leva a revisitar as concepções que você tem sobre si, e sobre a personalidade que você pode ter escolhido para chamar de sua. A história contada aqui é a de Gary Johnson, interpretado por Glen Powell (Top Gun: Maverick) um professor universitário de filosofia e psicologia que tem a rotina mais normal e comum possível. Mora sozinho, vive para seus alunos e gatos, e de vez em quando faz bicos para a polícia, baseado em conhecimentos de informática.
Tudo começa a mudar quando um dos policiais que se passa por um assassino de aluguel (em inglês, “Hit Man”, o nome do filme) para coletar provas e incriminar “clientes” que querem encomendar mortes, precisa se ausentar, e Gary é o único que pode assumir o posto. Assim, ele se torna um ator de assassinatos, fingindo ser alguém que não é, em prol do trabalho policial.
Tentando alcançar a excelência em seu trabalho, o professor passa a estudar seus contratantes, para entregar a cada um deles uma performance personalizada, com o tipo de assassino que eles esperam encontrar. Com isso, o longa nos convida à primeira grande reflexão da história - como podemos nos tornar diversas pessoas, e escolher alternar entre essas personalidades.
Um pouco fragmentado, né? Mas é mais ou menos por esse caminho mesmo. Gary começa a testar personalidades, até que usa um personagem chamado Ron para conhecer Madison, personagem de Adria Arjona (Morbius), uma mulher que vê como último recurso matar seu marido abusivo. Mas aqui, o falso Hit Man faz um trabalho diferente. Em um lapso de humanidade, ele a convence a refazer sua vida sozinha ao invés de cometer o assassinato. Assim, os dois passam a se aproximar, e acabam se apaixonando. Mas não Madison e Gary - Madison e Ron.
Com a evolução do filme e o surgimento de mais tramas envolvendo romance, trabalho e identidade, fica a grande dúvida de quem nos tornamos quando flutuamos entre personagens distintos, e o quão longe de nós mesmos podemos ir para nos adaptarmos a alguém.
O Acaso
A premissa de Assassino por Acaso, tal qual seu nome, tende a prometer pouco. Ao que tudo indica, o filme é mais um daqueles que caem na Sessão da Tarde após alguns anos, recheado de dublagens duvidosas. Mas, aqui, o caminho seguido foi diferente.
Apesar da base batida, é justo dizer que o roteiro do longa salva a produção, e cria um filme verdadeiramente surpreendente, dinâmico, divertido e diverso de assistir. Escrita em conjunto pelo protagonista Glen Powell e o diretor Richard Linklater, que tem experiência com romances na trilogia “Antes do Amanhecer”, e com comédia em “Escola do Rock”, a história une diversos gêneros cinematográficos em uma só linha, que sabe a hora certa de seguir em frente sem ficar cansativa.
O enredo, que à primeira vista parece ser de suspense ou drama, acaba se mostrando uma mistura mais concreta entre romance e comédia, arrancando diversas risadas do público a todo tempo e exibindo uma química inegável entre o casal principal. A história original aconteceu entre 1980 e 1990, quando o Gary Jhonson verdadeiro se passou por matador de aluguel para a polícia de Houston. Linklater encontrou a história em um artigo de 2001 e, junto com Powell, começou a desenvolver a base. Adicionando algumas mortes e pitadas de cinema, os dois criaram uma narrativa fluida, divertida e envolvente para a trama.
Com um fator surpreendente sempre presente, a história de Gary e Madison é daquelas que tem a coragem de seguir um caminho completamente diferente do previsto pelo espectador, chegando a pontos onde a resolução de problemas relevantes no longa chegam a quem assiste como um grande “não acredito que isso realmente aconteceu”. Sempre partindo de momentos que transmitem a sensação de que tudo deu certo, ainda que com uma pulga atrás da orelha, a narrativa traz quebras de expectativa constantes, geralmente utilizando-se da genialidade do personagem de Glenn, ou da coragem insana da personagem de Adria.
Essa dinâmica está presente, inclusive, na resolução do conflito final do filme, que parece ter recebido um desfecho insuficiente para a profundidade da questão. A justificativa para isso vem da oscilação entre seriedade e comicidade, que abre espaço para que o longa não seja tão coerente, ou mesmo realista, mas sim interessante.
Outro gigante acerto do roteiro é a conciliação entre sucessão de acontecimentos, e aulas de Gary como professor. Intercalando mudanças de personalidade com um semestre que trata dos conceitos clássicos de Id, Ego e Superego, o público consegue enxergar na prática os conceitos de construção do ser, acompanhando o processo psicanalista e filosófico exposto na tela de maneira leve e simples.
O Assassino
Um dos grandes trunfos de Assassino por Acaso é, sem dúvidas, a atuação de Glen Powell. Recebendo o desafio de atuar em metalinguagem, com um personagem que se passa por outros, o ator tirou a tarefa de letra, e se transformou em um piscar de olhos de uma personalidade para outra dentre os matadores de Gary.
Muitas vezes, ao assistir a um filme, a atmosfera do personagem se torna tão convincente que leva quem assiste a esquecer que aquilo é tudo uma atuação. Nessa produção, no entanto, o protagonista em si precisa deixar de lado sua personalidade original para assumir outras, e é aí que surge o lembrete de que há um ator - e muito talentoso - por trás do personagem.
Com transições fluidas, rápidas e excelentes entre personalidades, Powell transita inclusive entre referências a grandes assassinos da história do cinema, um grande acerto da equipe de roteiro e direção que faz referência a outros filmes conhecidos. Aqui, a ideia é a reprodução do estereótipo de matador que as pessoas que o contratam têm, e o que pode ser mais fiel do que os moldes que estamos acostumados a ver nas telonas, não é?
O amplo espectro abarcado pelo ator se manifesta tanto entre personalidades em frames curtos, quanto na gradual e extremamente bem feita transição de Gary para Ron. Em um trabalho conjunto, atuação, figurino e maquiagem transformam o professor nerd e sem graça em um assassino poderoso e sensual, bem debaixo dos olhos do público. Contrariando costumes do cinema quando se transformam protagonistas, estilo repaginada no visual de “O Diário da Princesa”, o processo feito aqui é tão lento e cuidadoso que, quando o espectador se dá conta (talvez até mesmo devido a comentários feitos sobre essa diferença no próprio filme), ele já mudou.
A Vítima - Assassina
Já na personagem de Arjona, Madison, a construção foi feita de maneira diferente. A aparência inicial de uma personagem forte e cheia de personalidade lentamente dá lugar a um grande bode expiatório de decisões confusas, mas essenciais para o desenvolvimento da trama. Trazendo para a mesa uma criatividade mórbida de maneiras de tortura e assassinato, as cenas com a protagonista tendem a chocar, e manter sempre uma sensação de rua sem saída a cada mudança na linha de acontecimentos, ou a cada mentira adicionada ao histórico.
Além disso, é impossível falar de Madison sem mencionar a sensualidade exemplar entre o casal principal. Em uma relação repleta de obstáculos, os dois apimentam o filme com cenas sexuais na medida certa, demonstrando um trabalho de dupla muito bem feito.
O Assassinato
Assassino por Acaso não é um filme de suspense, nem propriamente de romance ou comédia. É uma mistura de todos eles, resultando em uma reflexão prática sobre a construção de nós mesmos, e o quanto ela pode ser transformada, sem a obrigação de uma lição de moral ao final da trama. Entre risadas, beijos e tiros, o espectador se diverte enquanto repensa até que ponto sua visão de si é alterada pelas pessoas às quais ela se adaptou.
Nota: 4/5
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