CRÍTICA | "Hora de Aventura com Fionna e Cake" é muito mais que um spin-Off
- Vinícius Nocera
- 9 de out. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

Hora de Aventura acabou em 2018 com um encerramento épico digno da série. Por ter um universo denso e cheio de coisas que ainda não tinham sido exploradas completamente, era só questão de tempo para a série ganhar uma continuação. Em 2020, a HBO Max, atual detentora dos direitos de exibição do desenho, financiou 4 episódios extras de 1 hora cada. Os episódios focam em núcleos distintos de diferentes períodos do tempo, alguns se passando apenas alguns anos depois do fim do programa, e outros muito tempo depois. Após o sucesso desses episódios, a HBO resolveu aprovar um spin-off, dessa vez abordando as aventuras de Fionna e Cake.

A fórmula para o Sucesso
Criado pelo animador Pendleton Ward e estreando em 2010 na Cartoon Network, a trama conta a história de um garoto chamado Finn e seu cachorro falante chamado Jake, que juntos desbravam um mundo mágico em aventuras emocionantes. Porém, esse enredo simples é apenas o que a série mostra em sua superfície. O roteiro trabalha temas complexos, como relacionamentos, amadurecimento, depressão, traumas, luto e solidão, ainda que de uma forma leve para que uma criança consiga assistir. O modo como essas questões são introduzidas e contrastam junto com todo o resto é extremamente orgânico e bem feito.
Os personagens também são extremamente carismáticos e bem desenvolvidos. A série dedica um tempo considerável aos coadjuvantes, de modo que muitos tenham um arco complexo e bem estruturado. A forma que os episódios são feitos contribui para esse desenvolvimento, pois a obra não tem pressa de seguir com a história. Fica a impressão que a série é mais sobre os personagens e como os acontecimentos marcam eles do que os acontecimentos em si. Isso é ótimo no caso de Hora de Aventura, porque os personagens são interessantes e os espectadores tendem a se importar com eles.
Outro elemento que traz identidade para a narrativa são as músicas. Cantadas pelos personagens, elas trazem uma carga emocional própria bem forte, explorando suas facetas com as letras e a atmosfera criada, além de serem bem gostosas de serem ouvidas.
Mas o que é Fionna e Cake?
Em Hora de Aventura, fica estabelecido que o universo de Fionna e Cake é outra realidade em que ocorre uma troca de gênero de todos os personagens da série original, bolada pelo Rei Gelado. Fionna e Cake é literalmente uma fanfic do Rei Gelado sobre outra possibilidade, em que ele até escreve livros com as histórias das aventuras desses personagens. Quando Fionna apareceu pela primeira vez na série original, parecia um episódio completamente desconexo do resto, focando na parte mais de romance da Fionna com os outros personagens. Porém, com o tempo, o mundo de Fionna começou a ser um tópico mais bem trabalhado no desenho, deixando portas para uma abordagem mais focada no futuro, que felizmente aconteceu com esse spin-off.

Hora de Aventura com Fionna e Cake
Focando agora na série nova, Hora de Aventura com Fionna e Cake é um spin-off de 10 episódios que busca aprofundar mais sobre o universo de Fionna e Cake e sua relação, ou falta dela, com o mundo de Ooo. O novo projeto foi criado por Adam Muto, um animador que foi um dos diretores de criação do desenho original e se tornou showrunner da série após Pendleton Ward decidir sair do desenvolvimento após a sua 5ª temporada.
O programa segue uma linha diferente da narrativa convencional, dando cerca de um episódio focado em cada personagem do grupo principal para apresentação e desenvolvimento base, servindo muito bem como introdução para novos espectadores como uma forma de relembrar quem já acompanha a série desde antes.
A história aqui começa na cidade de Fionna, que mora em um apartamento com seu gato, Cake. Diferente do que conhecemos em HDA, aparentemente é uma cidade humana normal, porém com os personagens tendo seus gêneros trocados. A protagonista frequentemente troca de trabalho e se mostra insatisfeita com a vida, até que portais mágicos começam a se abrir pela cidade, que acabam puxando a protagonista e sua gata para um mundo mágico que é bastante familiar aos espectadores: a terra de Ooo.

Essa perspectiva da Fionna abre portas para as músicas dos desenhos. As músicas aqui são usadas muitas vezes para introduzir novos personagens, dando um caráter bem musical para o desenho, que combina muito bem com o clima. A insatisfação da futura heroína é representada de forma genial pela música “Not Myself”, que apresenta um ritmo animado mas com uma voz mais melancólica e letras extremamente pesadas, dando um contraste muito bom para o tom que foi apresentado até então pela animação.
Com o tempo, vão sendo apresentados mais personagens e outras perspectivas, como a do Simon, antigo Rei Gelado, que se encontra depressivo e perdido em relação a quem ele é agora e o que deve fazer da vida, ao mesmo tempo que busca superar a perda do amor da sua vida, Betty. Ele vai gradualmente ganhando mais foco até se conectar com a Fionna e Cake, fazendo parte assim do grupo principal de personagens.
Fechando o trio principal, existe também o episódio da Cake, que introduz ela para as terras de Ooo enquanto ela descobre sobre a mágica e reflete as diferenças entre os mundos. Com o tempo, vão aparecendo outros personagens coadjuvantes que tem mais foco e desenvolvimento, como o Marshall Lee e o Gary Prince, fazendo um contraste do mundo mágico de Ooo com o mundo normal da Fionna.
Após a introdução, é revelada a motivação da história: O universo de Fionna foi criado por uma Entidade Cósmica chamada Prismo, responsável por criar realidades para quem fizer algum pedido a ele, mas não podendo fazer universos para si mesmo. Por ser um fã de carteirinha do universo de Finn e Jake, ele decide criar um uma fanfic e armazená-la na cabeça do Rei Gelado, conhecido por ter uma mente completamente vazia. Dessa forma, ele cometeu um crime, e por esse universo não ser canônico e não estar diretamente conectado aos demais, o funcionário das Entidades Cósmicas, Scarab, deve encontrar o trio principal e banir o universo ilegal, além de prender Prismo por seu crime.

Muito mais que um spin-off
Fionna e Cake funciona tanto como um spin-off, quanto como uma continuação de Hora de Aventura. Isso porque a trama adota a lógica atualmente popular de multiverso, em que existem várias realidades diferentes e algumas coisas são um pouco ou muito diferentes da “terra principal”. O uso dos diferentes universos na história é executado de maneira espetacular, ao misturar realidades que já foram mostradas antes, algumas inéditas e outras surpresas. Mesmo assim, o desenho tem uma história original e independente o suficiente de ser possível ser consumida sem ter que assistir Hora de Aventura, mas aqueles que já assistiram provavelmente terão um entendimento inicial melhor dos mundos, de algumas tramas e personagens, além da sensação de nostalgia ao reverem rostos conhecidos, conceitos e universos que fazem participações especiais aqui, ainda tendo a surpresa das novas ideias.
Tendo 10 episódios com mais de 20 minutos cada (cerca do dobro do tempo de Hora de Aventura por episódio), o spin-off adota um caráter bastante ambicioso ao se propor a amarrar todos esses universos e personagens que vivem lá. Em questão do ritmo do desenho, é algo muito gostoso de se acompanhar. Bem parecido com Hora de Aventura, a série não tem pressa para continuar a história, dando espaço aos seus personagens para terem tempo de tela e desenvolvimento, e a história continua como consequência.

Em relação ao elenco, ele é muito bom no geral. Ele deixa de ser uma caricatura e passa a ser único e bem desenvolvido. Simon e Fionna tem uma química muito boa e as interações entre eles são bem orgânicas. Cada um deles é extremamente interessante e tem seus próprios momentos. A dinâmica dos coadjuvantes mais frequentes também é muito boa, sendo tanto o Marshall Lee como o Gary Prince personagens bem divertidos de acompanhar. Porém, Cake deixa um pouco a desejar. A série tenta fazer com que o espectador goste dela, mas ela se revela bastante irritante, sendo o seu episódio facilmente o pior do programa em quesito de ritmo e de não ser tão interessante, além dela não ter um desenvolvimento tão bom em relação aos demais personagens. Por isso, ela acaba dando uma quebrada na dinâmica boa criada em alguns poucos momentos, assim não conseguindo deixar de ser apenas uma caricatura do Jake.
Animação e experimentação
Uma coisa que Fionna também brinca bastante é com o estilo de animação. Fugindo um pouco do convencional estilo criado por Pendleton Ward, em algumas cenas e músicas o desenho acaba mudando o estilo de repente para se adequar melhor ao momento em questão. Isso acontece em alguns momentos durante a série e é uma adição bem vinda que acaba dando contraste a qualidade do desenho
Existe também uma sutil mudança no tom em que a animação é conduzida no geral. Enquanto Hora de Aventura tinha uma classificação de TV-PG (Parental Guidance, sob orientação dos pais) nos Estados Unidos, Fionna e Cake tem sua classificação indicativa aumentada para TV-14. Em alguns momentos, existe um pouco de violência mais explícita — sangue, dentre outras coisas —, mas acaba não destoando muito do que foi representado no programa original quando se fala dos temas abordados graficamente. A história ainda continua madura, apenas não é tão no subtexto quando comparada com quando o foco era no Finn e no Jake, abordando ainda temas como luto, depressão, relacionamentos, propósito e aceitação, com mais liberdade em como serão representados pela classificação indicativa ter aumentado.
Existe também uma liberdade maior para abordar personagens LGBTQIA+ no spin-off por causa da mudança de classificação indicativa e também da evolução do pensamento em geral de como são representados em desenhos. Em Hora de Aventura, uma das cenas que concretiza um dos casais mais icônicos dos desenhos animados, Marceline e Princesa Jujuba, quase não ocorreu na época por medo dos produtores de “chamar muita atenção”. Foi graças a muita luta da artista de storyboard Hanna K. Nyström para convencê-los que acabou sendo possível que esse beijo se tornasse realidade. Felizmente em contraste, Fionna e Cake parece ter muito mais liberdade para abordar esse tema, junto de tantos outros.
Conclusão
Hora de Aventura com Fionna e Cake reúne tudo o que faz Hora de Aventura ser tão especial, dessa vez com mais liberdade e experimentações que deixam a experiência de assistir esse spin-off bem dinâmica. Esse sentimento de ser ainda o desenho que tanto amamos, mas ser único de sua própria forma, faz com que seja muito mais que apenas um spin-off.
Nota: 4,5/5
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