CRÍTICA | A Substância é a sua melhor versão... Ou não
- Roger Caroso
- 26 de set. de 2024
- 5 min de leitura

O novo filme da diretora francesa, Coralie Fargeat é um claro exemplo de um cinema que dá espaço para novas histórias e ideias criativas, sem um medo de taxação e necessidade de agradar a todos. Um body horror sobre envelhecimento e que busca criticar a indústria do entretenimento, que ainda vive sob o patriarcado. Além, é claro, de ser um retorno triunfal de Demi Moore ao protagonismo em filmes de relevância, e quem sabe, pode vir aí a primeira indicação ao Oscar.
Elizabeth Sparkle (Demi Moore) é uma celebridade que já foi muito famosa como atriz, mas que atualmente apresenta um programa de dança na televisão, que é voltado ao público da meia idade. Após o produtor Harvey (Dennis Quaid) decidir que ela estava velha demais para aquilo, Sparkle perde seu emprego e começa a se questionar sobre sua idade, corpo e aparência no geral, criando gatilhos emocionais, além de uma série de compulsões e paranoias. Os rumos da ex-estrela mudam a partir do momento em que ela conhece “A Substância”, uma droga vendida de maneiras bem duvidosas, a qual promete entregá-la uma jovem e melhorada versão de si mesma.
Com a primeira utilização da droga, descobrimos que essa nova versão de Sparkle é nada mais, nada menos que um corpo inteiramente novo, que tem uma aparência consideravelmente mais jovem e definitivamente mais atraente para o mercado do entretenimento. A mulher agora possui dois corpos diferentes, os quais terá de sempre estar alternando entre eles a cada sete dias para manter o funcionamento da “Substância” estável. Essa nova versão de Sparkle ganha o nome de Sue, apenas Sue (Margaret Qualley), sem mais nem menos.
A recém-criada identidade vai conquistando seu espaço no showbiz, e com isso, alimentando o tão desejado sonho estrelado de manter a fama de outrora que Sparkle tinha dentro de si. Mas a busca insana pelo sucesso começa a separar drasticamente a cabeça dessa mulher a cada nova troca de corpo. Sue é jovem, descolada, totalmente na moda e completamente desejada. Elizabeth, por outro lado, não se enxerga no corpo e rosto de alguém que já está na casa dos 50 anos. Ela sente falta da atração que costumava gerar nos homens, a ponto de ter dar bola para um dos maiores esquisitos da terra, só porque ele ainda consegue vê-la de uma forma atraente.
Os contrastes entre beleza e idade são alvo de debate há muito tempo, nas mais diversas mídias. Da mesma forma que é de conhecimento comum que Hollywood prega por essa juventude e jovialidade de uma forma extremamente predatória, ainda mais se tratando de mulheres. Contudo, a construção de Fargeat nos leva para os diferentes lados desse debate de formas muito interessantes, permitindo que esse discurso alcance o espectador, mas de uma maneira eletrizante, contagiante e fulminante. A mistura de terror com sci-fi foi uma excelente sacada, uma dupla super consagrada e que ganha roupagens riquíssimas dentro das 2h21 de duração. A ponto de ainda no primeiro terço do filme, o nascimento de Sue remeter a clássica franquia “Alien” de uma forma lindamente angustiante e grotesca.
Pelo lado gráfico, esse filme pode não ser fácil para quem tem um estômago mais fraco, claro, não é uma desgraça tal qual um “Terrifier” (2016) da vida, mas com certeza nos atinge muito mais pelo lado de uma sensibilidade plausível, em contraste ao gore extremo do filme supracitado. Se falando de uma obra tão focada em temas envolvendo desejo, corpos e envelhecimento, aproveitar-se do body horror foi uma tacada de mestra da Fargeat. Visto que a cada mal-uso da “Substância”, o corpo original sofre uma deterioração, gerando o claro elo entre a busca pela perfeição e autodestruição
É clássico do cinema de terror a ligação da sensualidade da mortalidade, tantos filmes de slasher nos quais as mortes acontecem durante o sexo ou por causa do sexo. Nesse caso, Sue é um ícone sexual de forma bem clara, seja a partir de como os momentos são filmados, sejam os closes bem sugestivos, além também na forma com que as cenas são compostas em cima desse lado imagético. Mas também que no final fala diretamente com o lado desse desespero para manter um corpo e uma aparência perfeita. Só que, ao mesmo tempo, existe uma demonização da velhice a partir de um aspecto visual, evocando até o grotesco. Todavia, a idade possui uma força, resistência e durabilidade que realmente impressionam e põem o espectador para pensar como que ela ainda consegue estar ali de pé.
Por meio de sátiras e exageros, o filme se aproveita desse tema envolvendo corpos e etarismo para levantar uma bandeira, a de que o envelhecimento não significa fim da vida, que é necessário haver uma continuidade. Além de aproveitar como isso afeta tanto as pessoas que ainda estão presas ao passado que não conseguem desvencilhar esse outro momento em meio da adaptação mundana. Seja a partir de novos interesses, outros gostos, e não da visão idealizada que passa a corromper. Essas críticas são muito bem exemplificadas, de uma forma que não fica deslocada ou parecendo forçado dentro da trama, é envolvimento integral, que compõe para os exageros, para o desgaste emocional e físico em meio ao caos.
Assim, chegamos no embate de duas atuações tão diferentes, mas completamente assertivas, de um lado a multifacetada Demi Moore, do outro, a ardilosa Margaret Qualley. Elas verdadeiramente encarnam essas diferentes personas em tela, a ponto de em um momento conseguirmos enxergar a mesma pessoa nelas, mas em seguida vemos as modificações, os novos entendimentos e construções em cima de suas aparências e de que forma a relação corpo e alma funcionam para aquela pessoa. Mesmo que “A substância” pregue delas serem uma só, ela já não consegue se comportar assim.
Então, a partir dessas diferentes facetas entregues principalmente por Moore, não é impossível enxergá-la na temporada de premiações, sendo um nome conhecido. Claro, a Academia tende a subestimar os filmes de terror, mas ela também gosta das histórias de reviravolta e comeback. Dessa forma, existe um mundo para que Demi Moore seja finalmente indicada ao Oscar, e definitivamente não seria uma injustiça, o trabalho dele nesse filme é verdadeiramente sublime, dando voz a diferentes vertentes, que ela traz com maestria.
Margaret Qualley pode não estar no mesmo gabarito de Demi Moore nessa obra, mas também é fundamental para que ela ande e se desenvolva. Tendo muito disso a partir de sua interpretação, que, ao mesmo tempo, é ingênua, mas com muito escondido, formando esse personagem dúbia e com um ar de sonsa, sendo uma construção mais difícil do que parece. Outro destaque É claro é o Dennis Quaid como Harvey, um coadjuvante de fato muito impactante, visto que suas ações são o estopim para o desenrolar da trama. Além de que em toda cena com ele, certamente é um momento de destaque, trazendo uma gravidade impressionante durante todo o filme.
De fato “A Substância” promete trazer a sua melhor versão, mas quem disse que a sua melhor versão é de fato boa? Alguém sem defeitos e imperfeições não cria os calos e as dores que moldam um caráter, é uma pessoa sem o entendimento de aprender a partir dos erros. “A Substância” utiliza o seu eu original para tirar a excelência de dentro dele, mas para conseguir essa excelência sem os processos necessários para chegar nela cria um molde vazio, um recipiente apenas de desejos, sem experiências.
É a partir disso que encontramos essa dicotomia tão forte entre Sparkle e Sue, a mesma pessoa, lados diferentes da moeda, mas que ao mesmo tempo estão ali conectadas, grudadas, inseparáveis. Uma não vive sem a outra, por mais que ambas tenham a Síndrome do Personagem Principal, precisam desse laço, mesmo nas horas mais tensas possíveis, a necessidade da dupla existência fala mais alto.
Uma pena esse texto não ser uma crítica com spoilers, acredito que já esteja na beira do que é considerado para estragar a experiência. Mas apenas pincelando sobre o final do filme, esse é definitivamente o momento que o espectador vai sair da sala pensando, uma catarse final e deleite para os fãs do body horror, sendo possível enxergar as mais diferentes referências e interpretações pessoais.
Nota: 4/5
Comentarios