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moqueka

Cinema indígena também é cinema nacional


O título desse texto pode parecer um tanto redundante, mas, o que vem à sua cabeça quando abrimos margem para a discussão do que é cinema nacional?

Sem dúvidas, nomes como O Auto da Compadecida, Tropa de Elite, Central do Brasil, Cidade de Deus ou Bacurau são um dos primeiros a emergirem. Todos esses são, indiscutivelmente, pérolas do cinema nacional, e conseguem retratar bem muitas esferas da realidade brasileira. Com críticas sociais marcantes, eles representam conflitos urbanos e rurais, violência, desigualdades sociais e retratam figuras geralmente marginalizadas. Mas, apesar de se tratarem de narrativas muitas vezes não-hegemônicas, essa “não-hegemonia” nem sempre (ou mesmo nunca, dificilmente) se reflete nos modos de produção desses filmes.


Antes de tudo, é válido ter em mente que a história dos povos originários foi, durante muito tempo, contada sob uma ótica colonialista. A imagem do indígena foi constituída em um lugar de alteridade, através de representações que reforçassem a ideia do selvagem, do bárbaro e do primitivo, oferecendo visões eurocêntricas das populações nativas que também contribuíram para a perpetuação de estereótipos. Salvo poucas exceções, nesse local de iconografia o corpo e alma indígenas foram reduzidos a uma exoticidade e a um idealismo quase romântico, separando essas pessoas do dito “mundo contemporâneo”. Essa imagem alimentou a percepção de que os povos originários se estagnaram no passado distante e estão desconectados de dinâmicas do presente.


Quem estuda comunicação e cultura (ou, quase qualquer outra disciplina da área das ciências humanas) topa com o termo descolonização em algum momento durante a sua formação. Para quem desconhece o termo, descolonizar significa, basicamente, romper com as amarras de uma construção colonialista, apoiando-se em um esforço consciente para questionar e reverter padrões e discursos moldados pela hegemonia eurocêntrica citada anteriormente. E isso envolve, é claro, a desconstrução de representações rasas, simplificadas e estereotipadas de populações subjugadas pela colonização – e a reconstrução da história não-contada pela voz do dominador.


No último fim de semana, pude testemunhar três obras indígenas apresentadas no Cine Kurumin, festival de cinema indígena que aconteceu do dia 17 ao dia 20 de outubro em Salvador, Bahia. A primeira delas foi o curta Wamã Mekarõ, um documentário de seis minutos dirigido por Bemok Txucarramãe, que narra o início da trajetória de Kiabeti, um dos primeiros cineastas Kayapó,que conta sobre a chegada e o começo do uso das câmeras na comunidade, no final dos anos 70.  

Kiabeti Kayapó em Wamã Mekarõ (2024) 

Aquilo me deixou maravilhada. Não somente pela profunda naturalidade nos registros do povo da etnia Mebêngôkre (Kayapó), mostrando seus hábitos, práticas, rituais e perspectivas, mas, também pelo modo como o audiovisual também se impõe e se consolida como uma poderosa ferramenta de reapropriação cultural, devolvendo o direito dessas pessoas a afirmarem e contarem, por si próprias, as suas histórias em seu próprio modus operandi.


Em uma pesquisa rápida assim que cheguei em casa, descobri um pouco mais sobre a cultura audiovisual dos Kayapó. Assim como outras etnias nativas, os Kayapó utilizam-se de sua herança guerreira para defender as suas terras, mas também incorporam a tecnologia, novos estilos e também a música, criando o que eles chamam de “Kaya-pop”. Eles utilizam as câmeras para documentar cerimônias, manifestações, rituais e demais coisas dentro das aldeias – e distribuem esses filmes depois –, como, também, utilizam dessa ferramenta para denunciar as invasões ilegais e monitorar atividades criminosas ao redor de suas terras.


– Versão “kaya-pop” de Hey Jude, dos Beatles.



– Festa da mandioca (2015) 



– Entrevista com o Cacique Mroo (2013) 




Não menos importante, existem outras comunidades indígenas engajadas a pensar cinema em todas as regiões do nosso país e em várias etnias. Além dos Kayapó, no Pará, com o Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre, há os Mbyá-Guarani, no Rio Grande do Sul, com o grupo Kuery e os Yanomami, no Amazonas, com o NAX – Núcleo Audiovisual Xapono. 


Ainda assim, o processo de distribuição desses filmes para a aldeia também significa a ampliação de suas vozes, fazendo com que o audiovisual se torne uma peça-chave não só da preservação cultural através dos registros, mas também, a materialização de uma resistência política que se faz mais que necessária em tempos de crise. Essa capacidade de reapropriação e força (por meio da arte) é algo que vai além da esfera estética, pois, como lembra o líder indígena, ambientalista, filósofo e imortal da Academia Brasileira de Letras Ailton Krenak, no livro Cosmologias da Imagem: Cinemas de Realização Indígena,


“A mesma câmera que pode registrar o desmanche de uma aldeia, a destruição de um assentamento, de um quilombo. Ela é também a câmera que pode contar uma historinha que embala a ideia de consumo, de privilégio e de exibição egoística da vida.  A escolha por uma narrativa comprometida com a vida, comprometida com o cotidiano das pessoas que estão em luta, ela é pessoal, é o realizador que faz essa escolha.” 

E mais: essa fala eternizada por Krenak nos lembra da dimensão poética do cinema de modo geral, pois explica a criação audiovisual em sua pluralidade de sentidos e mensagens, infelizmente, dentro do guarda-chuva “cinema indígena”. De fato, os três filmes que pude assistir no festival demonstraram o domínio de narrativas que são comprometidas com o cotidiano das comunidades que resistem, e que reivindicam pela preservação dos seus territórios e cultura. Mas, esmiuçando a fala do ambientalista, essas narrativas nem sempre precisam ser endossadas em discursos ou denúncias – elas podem ser consideradas fúteis, enquanto a sua futilidade também exprime resistência. 


Numa roda de bate-papo intitulada “Descolonizando a partir da imagem”, que rolou logo após a exibição dos três documentários da sessão das 16h no Cine Kurumin, a cineasta, jornalista, curadora e performer Olinda Tupinambá traduziu um pouco o que significava essa dimensão quando falou do seu filme média-metragem (que logo após, foi premiado como o melhor filme da categoria definido por menção honrosa!) Ibirapema, na qual ela mesma, pintada de onça, interpreta a personagem de nome homônimo que viaja entre o mundo mítico e cotidiano, estabelecendo conexões com a arte moderna, cenários urbanos e florestas domesticadas. É um filme experimental, e, assim como outras obras da cineasta, também adota elementos de performance. “Me perguntaram: ‘o que a onça em Ibirapema significa? O que ela é?’ Ora… ela é uma onça!”, disse Olinda, muito bem-humorada. 


A leveza na resposta da cineasta revela outra camada da produção audiovisual indígena, que, assim como muitas outras mídias, é disruptiva por não precisar estar inserida numa lógica ocidental e/ou tradicionalista. A onça não precisa necessariamente ter uma explicação simbólica profunda e tácita – ela apenas “é”, e pode existir apenas como um produto artístico. O importante é que esse espaço de produção exista e seja acessível agora, pois, como pontuou a psicóloga e escritora guarani Geni Nuñez (@genipapos), outra figura presente no debate: a abertura desses espaços para a população nativa nem sempre foi espontânea. 


E por falar em espaço – no sentido do território –, Relatos de Uma Guerra foi outro documentário exibido no Cine, dirigido por Pedro Biava e de 26 minutos de duração. Evidencia os ataques que os indígenas Kaiowá e Guarani sofreram na retomada das suas terras tradicionais, organizados por fazendeiros e forças policiais no Mato Grosso do Sul. O documentário tem caráter bem expositivo, também denunciando a política anti-indígena incentivada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o que transformou a região em um dos lugares mais conflituosos do país. 


O próximo documentário apresentado no Cine, denominado Ava Yvy Pyte Ygua/ Povo do Coração da Terra tem 39 minutos e foi dirigido pelo Coletivo Guahu'i Guyra Kuera, do Pará. Para além de um caráter expositivo, já que também narra a tentativa de retomada de territórios ocupados por fazendeiros, a obra contém um olhar mais sensível, trazendo poesia nos raios e a lua que iluminam a escuridão necessária no momento de reconquista, além de destacar a conexão do povo com a terra através de um canto. 

 Ava Yvy Pyte Ygua/ Povo do Coração da Terra (2023)

Podemos notar semelhanças na narrativa dessas duas últimas obras apresentadas no Cine, mas suas abordagens possuem diferenças que nos conectam de maneiras diferentes nas narrativas: enquanto Relatos de Uma Guerra nos coloca diante da brutalidade das disputas políticas que alimentam a violência, Ava Yvy Pyte Ygua/ Povo do Coração da Terra oferece uma experiência muito mais contemplativa, captando a espiritualidade desses grupos na recuperação de suas terras. 


Eu queria que a minha experiência no Cine Kurumin tivesse sido um pouco mais ampla. As intempéries da vida e rotina no geral não permitiram que eu testemunhasse a todos os outros incríveis filmes apresentados na mostra que foi ao ar no último final de semana, incluindo animações como Quando os Maíra’yr Criaram a Noite e Puririkuy, além de filmes que também abordassem questões de gênero e sexualidade nas aldeias, como TRANSpassado – corpos que retratam e também filmes que me fizessem quase me sentir em casa, como Toda Menina Baiana – Coroa Vermelha. 

Puririkuy (2021). Imagem: Cine Kurumin 

Apesar de tudo, de uma coisa eu tenho certeza: todos esses filmes, assim como Ailton Krenak reforçou, optam por narrativas comprometidas com a vida. Nesse espaço, o audiovisual, o cinema e a arte se encontram como uma ferramenta de afirmação das identidades dos povos originários, abrindo novas formas para conhecer o Brasil além de narrativas já afirmadas com a popularização de outras obras brasileiras – que, é claro, também não deixam de ser incríveis. Mas, a experiência é de conhecer, também, o Brasil que não é só o “Brazil”, no olhar do gringo.


Temos que aplaudir projetos como o Cine Kurumin, que além de muitos outros, dão voz, materialidade e acessibilidade a obras que, infelizmente, ainda não alcançaram o mainstream. O festival é apenas um convite para nos debruçarmos na pluralidade que há no guarda-chuva do cinema nacional, e que o cinema indígena não se indissocia dele, mas faz parte de toda sua essência, tornando o fazer cinema ainda mais completo, e, acima de tudo, mais brasileiro do que nunca. 


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